Há mais médicos a serem alvo de processos disciplinares pela Ordem dos Médicos. Em 2017, as três secções regionais da OM abriram 817 processos até outubro, o que significa que em dez meses o número superou o total de 2016 que se cifrou em 629. Apesar do aumento, o arquivamento continua a ser o principal destino dos processos.
No ano passado foram aplicadas 32 sanções: houve quatro médicos suspensos, 23 alvo de censura e cinco que mereceram uma advertência. Em 2016, as 31 sanções traduziram-se em dois médicos expulsos, três suspensos, 21 alvo de censura e 5 advertidos.
"Os processos estão a aumentar devido às condições de trabalho atuais, que levam ao aumento da litigância entre médicos e utentes", considera Miguel Guimarães, bastonário da OM, que diz já ter alertado o ministro da Saúde para este aumento de conflitualidade.
Por um lado, a relação entre médico e doente é muito curta. "Para exercer medicina de qualidade os médicos não podem ter 30 ou doentes para atenderem numa manhã. Nem um médico de família pode ter tantos doentes. Assim, estes conflitos vão continuar a existir", aponta Miguel Guimarães., lembrando que também as agressões a médicos e outros profissionais de saúde "têm aumentado", fruto desta conflitualidade que, no seu entender, é provocada pelo sistema. "Já fizemos chegar ao ministro da Saúde a nossa preocupação. É preciso ter atenção."
Com este volume de trabalho, os médicos "ficam exaustos e já não têm a atenção devida. A relação que devia ser de empatia entre médico e doente não se estabelece. Quando ela existe, uma falha é facilmente compreendida Se não existir, qualquer pequeno erro leva a uma queixa. A maior parte das queixas tem a ver com a educação. Com a forma como se fala."
A OM não forneceu ao DN a estatística sobre o tipo de infração cometida, a nível de processos abertos e também de sanções aplicadas, explicando que "os Conselhos Disciplinares têm em curso a atualização da informação estatística, processo ainda em desenvolvimento", situação que Miguel Guimarães adianta estar a ser alvo de reorganização. "Havia diferentes tipificações entre os conselhos. Neste momento estamos a tentar estabelecer um padrão de classificação das matérias em apreciação." Apesar disso, o bastonário diz que são as queixas dos doentes que dominam, seguidas por denúncias de outros médicos, "em muito menor número" e de iniciativas da própria ordem seja a nível nacional, pelo próprio bastonário, ou pelos conselhos regionais.
Psiquiatria no topo
Da análise que faz o bastonário, a área de psiquiatria é a que motiva mais processos. "É por si uma área mais sensível e há muitos processes relacionados com o facto de o médico não passar um atestado", explica o dirigente da OM.
Na obstetrícia também há muitos casos, numa tendência que é internacional. "Qualquer problema no parto, na criança, desencadeia uma queixa. Nos Estados Unidos ninguém quer ir para obstetrícia devido a esses problemas. O médico está sempre na corda bamba."
Outra especialidade em que a relação médico-paciente acaba, com relativa frequência, em litígio é a cirurgia plástica. "Normalmente as pessoas esperam resultados, depois não se sentem satisfeitas e queixam-se", explica Miguel Guimarães.
Para já, as novas práticas ligadas à telemedicina ainda não motivaram processos em número assinalável. "Já terá ocorrido um ou outro mas não deu origens a muitas queixas. Contudo, é um fenómeno que está em crescendo e que nos vamos ter de adaptar. Em termos de regulamentação não estamos preparados e devemos pensar nisso. Temos que evoluir e acompanhar as mudanças", perspetiva o bastonário.
Esperar pelos tribunais
O que entra na esfera disciplinar é a fraude fiscal ao SNS . Um médico será objeto de procedimento disciplinar, por exemplo, no caso de a fraude ser cometida através da falsificação de prescrição médica ou atestados.
Este último caso integra os processos mais demorados porque implica quase sempre o julgamento nos tribunais. "A Ordem tem de esperar pela decisão dos tribunais, pelas investigações policiais. Não tem os meios necessários para essas averiguações pelo que a decisão judicial é fundamental. É o caso do médico cubano, de 36 anos, que no mês passado foi condenado a seis anos de prisão por cinco crimes de violação de doentes no serviço de urgência do Hospital Hospital do Divino Espírito Santo, em Ponta Delgada, nos Açores. Após a leitura do acórdão, a advogada anunciou que iria recorrer e que o médico poderia exercer.
"Disse isso por ter recorrido mas o antes, por decisão judicial, o médico estava suspenso de funções. Não existindo trânsito em julgado, não se pode exercer a disciplina. Acontece o mesmo internamente: se um conselho regional sancionar um médico, ele pode recorrer para o Conselho Superior, nacional, e depois ainda pode ir para os tribunais. Até haver decisão final, a OM não atua", diz Miguel Guimarães, admitindo que a situação é complexa, especialmente se envolver situações como a pedofilia. E Portugal já teve um processo como o Casa Pia em que um médico pediatra, Ferreira Diniz, acusado de abusos sexuais de menores, posteriormente condenado, continuou a exercer. "Talvez seja altura de repensar a lei, para se poder atuar de forma mais rápida", admite o responsável.
No caso do médico cubano, se a condenação se confirmar, o Bastonário não duvida que dá origem a expulsão. "Não é a violação em si que a disciplina irá avaliar, é sim um médico ter sexo com um doente, o que vai contra o código deontológico e dá direito a expulsão."
A possibilidade de suspensão preventiva está prevista no Regulamento Disciplinar. Contudo só pode aplicada em determinadas circunstâncias e se a infração em causa for punida com suspensão ou expulsão. Mas só pode vigorar durante seis meses. Pode ainda o médico ser suspenso do exercício de funções por decisão administrativa, em sede de processo disciplinar instaurado pela entidade onde presta serviço ou por decisão judicial.
Em relação às decisões judiciais, a lei prevê que sejam enviadas à OM pelas autoridades (tribunais, Ministério Público, polícias) da prática de factos suscetíveis de constituir infração disciplinar. No entanto, a OM diz que "não tem possibilidade de aferir e controlar" se este envio é sempre cumprido. E nos tribunais, a lei só se aplica aos criminais. Nos restantes fica ao critério do juiz. A OM pode sempre, ao ter conhecimento de factos, solicitar a um tribunal as informações sobre um processo judicial.
A eventual negligência é muitas vezes também motivo para queixas, embora por vezes exista uma confusão entre erro e negligência. "O erro pode sempre acontecer e até pode ter uma explicação. A negligência é muito mais grave", salienta Miguel Guimarães, para quem é necessário mais conhecimento sobre as falhas no sistema.
A Direção-Geral de Saúde tem o objetivo de registar melhor os erros dos profissionais, aperfeiçoando o Sistema Nacional de Notificação de Incidentes. A OM também, através do seu Conselho Nacional, já se debruçou sobre o assunto e pretende ter mais informação para poder avaliar o que corre mal, diz o bastonário. "Se não conhecermos os erros dificilmente os vamos corrigir. Queremos ter uma plataforma para que os profissionais reportem as falhas, mas sem intuitos punitivos. O objetivo é aprender alguma coisa."
David Mandim | Diário de Notícias | 22-01-2018
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