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REVISTA DE 2018

Absurdos na governação da Justiça

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Manuel Soares - É simplesmente enganoso dizer que as medidas de cosmética previstas solucionam o problema em dois anos. É necessário muito mais.

Vamos imaginar uma pessoa que precisa de seis horas para completar os 42 quilómetros da maratona e acha que se treinar para correr mais depressa os últimos 100 metros ainda pode ir aos jogos olímpicos. ­Parece absurdo, não parece?

Então e se for um governante a dizer que um processo judicial, que demora 10 anos à espera de sentença, vai andar mais rápido, só porque agora a notificação electrónica da sentença demora milésimos de segundo e não os 3 dias do correio? Não parece absurdo também?

Pois, é isso mesmo. Há maneiras de governar que não parecem sérias. Vamos ver uma.

Há nos tribunais administrativos e fiscais 15.000 processos anteriores a 2013 parados à espera de sentença (alguns há 15 anos). O problema, de longe o mais grave da justiça portuguesa, não pára de piorar de ano para ano. Os governos assobiam para o lado, enquanto floresce o negócio privado das arbitragens fiscais – que vale muitos milhões. As grandes empresas pagam fortunas a árbitros e têm as suas sentenças em meses; o cidadão comum e a pequena empresa vão para a lista de espera, anos e anos a fio.

E que soluções propõe o Ministério da Justiça para este problema dramático?

Em primeiro lugar, a insistência na desmaterialização e automatização electrónica do processo. Isto é pôr um Kamov a despejar água ao lado do incêndio. Pode ser muito interessante para ir ao estrangeiro mostrar que temos uma justiça muito tecnológica e moderna, mas não resolve o problema das pessoas que desesperam enquanto não vêem os seus assuntos resolvidos no tribunal.

Em segundo lugar, mais um pacote legislativo. Outra vez o milagre de fazer omeletes sem ovos. Diz o Governo que dentro de dois anos (quando a Sra. Ministra da Justiça já se tiver ido embora) está tudo resolvido. Com quê? Com meia dúzia de leis, pois claro.

Vamos então fazer umas contas simples, que qualquer pessoa percebe. O valor de referência processual aplicado nos tribunais administrativos e fiscais aponta para uma média de 150 processos findos anualmente por juiz. Sendo assim, para liquidar aquele passivo de 15.000 processos em dois anos, são precisos mais 50 juízes. Mas é preciso ter em conta que a formação de um juiz demora três anos e o Centro de Estudos Judiciários (onde os juízes são formados) tem uma capacidade limitada. Portanto, mesmo começando já, reforçando a admissão extraordinária de juízes até ao limite possível, só daqui a oito anos, na melhor das hipóteses, teremos os tais 15.000 processos todos terminados.

Mas o Governo diz outra coisa. Que resolve tudo em dois anos sem precisar de mais juízes. Isso é absolutamente impossível.

Entram nos tribunais administrativos e fiscais 25.000 novos processos em cada ano. O actual contingente de juízes consegue terminar 105 processos por cada 100 que entram (a taxa de resolução de 2017 foi de 105%). Portanto, se deslocarmos uma parte destes juízes para tratar daqueles 15.000 processos, não resolvemos nenhum problema e vamos criar outro. Os processos atrasados vão atrasar mais ainda e os que agora entram e têm resposta rápida vão passar a atrasar também.

É simplesmente enganoso dizer que as medidas de cosmética previstas solucionam o problema em dois anos. É necessário muito mais. Primeiro, obviamente, reforçar os tribunais administrativos e fiscais com mais juízes. E não é só na primeira instância. Não adianta nada se as sentenças depois pararem mais uns anos nos tribunais de recurso. Além disso, são necessárias medidas de simplificação processual, para resolver de forma sumaríssima questões que não têm importância. Não podemos ter juízes que perdem horas a ouvir testemunhas e a fazer sentenças das portagens das SCUTS, que em muitos casos valem cêntimos, enquanto as sentenças dos milhões de impostos ficam à espera – é isso que hoje acontece. É preciso também assumir o custo político de definir prioridades. Se não se pode fazer tudo ao mesmo tempo, alguém tem de dizer o que é mais importante fazer primeiro. Por fim, é preciso ter mais ambição do que aquela que o Governo mostra, quando apenas considera processos antigos os anteriores a 2013. Isso é brincar com as pessoas que já aguardam sentença há 4 ou 5 anos. Qualquer processo com mais de dois anos é antigo e tem de ser tratado como tal.

Custa ver tanta insistência no absurdo de se achar que se pode resolver alguma coisa sem fazer nada.

Manuel Soares, Presidente Direção Nacional ASJP | Público | 20-06-2018

Comentários (4)


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Caro colega Manuel Soares:
Excelente artigo, como sempre. Mas gostava de ouvi-lo questionar a forma atual de acesso aos tribunais da relação. Valorizar um sistema em que alguém pela simples circunstância de há 20 ou 30 anos ter uma determinada média de licenciatura, ter ficado no primeiro quarto da classificação no Cej, e com isso ganhar pontos inultrapassáveis por alguém que ao longo desses 20 ou 30 anos até pode ter sido melhor juiz, não é justo. Como não é justo valorizar comissões de serviço. Alguém se convence que uma comissão de serviço permite fazer melhores acórdãos do que aqueles que não as fazendo despacham processos e fazem sentenças no dia a dia?
E muito mais poderia ser dito...
Pedrinho , 23 Junho 2018 - 17:06:58 hr.
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Acho muito engraçadas estas dúvidas existenciais recorrentes sobre os méritos judiciários de quem se licenciou com 15 ou 16 valores, quando raramente as vejo relativamente a quem se licenciou com 10 ou 11.Parece que quem se licenciou com 16 valores ainda tem de pedir desculpa a quem se licenciou com 10. Até prova do contrário, quem se licenciou com 15 ou 16 valores deve presumir-se, sim senhor, melhor jurista e melhor futuro desembargador do que quem se licenciou com 10 ou 11. Se a prova do contrário é possível? Obviamente! Até ser feita, no entanto, a "determinada média de licenciatura de há 20 ou 30 anos atrás" parece-me, coeteris paribus, aposta bem mais segura para o acesso aos Tribunais da Relação do que a "determinada mediazinha de há 20 ou 30 anos atrás".
JS , 24 Junho 2018 - 00:41:57 hr.
...
O sistema antigo era muito pior porque nele não havia qualquer mérito, todos marchavam pela ordem de antiguidade e, ainda mais grave, juízes com prestações de qualidade inferior (bom com distinção) passavam à frente de quem tinha a classificação máxima, às vezes mais do que uma classificação máxima (muito bom). As médias de curso podem não dizer muito do que é ser um jurista passados 20 anos. Isso é verdade. Mas não é esse o principal factor. Aliás, quem tanto critica os mestrados e doutoramentos, comissões de serviço, etc., primeiro não tem em conta que a pontuação que daí possa advir é absurdamente insignificante no cômputo global, porque a grande parte da pontuação é feita pela avaliação que os membros dos juris fazem da prestação do juiz como juiz, pelos trabalhos forenses (decisões) pelo mesmo apresentadas. E depois, bem, quem se esforça por estudar mais e prestar algum serviço em benefício público não estou a ver porque razão tal não deve ser reconhecido. Estou à vontade porque ainda me falta muito tempo para o concurso, não tenho nenhum desses factores (mestrados, comissões e afins), não estou minimamente preocupado com quem os tenha e estou a ponderar candidatar-me a um mestrado, não para ficar à frente de ninguém mas para aprofundar mais o estudo e conhecimento. Se isso me der melhor capacidade de raciocinar e ponderar as provas, de pesquisar melhor doutrina e jurisprudência, de melhor as aplicar, então a actividade judiciária sairá beneficiada. E acho, muito sinceramente, que em tal caso não pode deixar de ser considerado no concurso!
Arrudinha , 24 Junho 2018 - 07:16:02 hr.
Mestrados e afins
O sistema antigo pela antiguidade era o mais correto.

Toda a gente sabe que as classificações de mérito têm muitos pontos subjectivos dependendo do "encosto devido" durante a carreira.

Para as comissões de serviço só são alegadamente convidadas e autorizadas pessoas que estão ligadas ao partido A ou B, ou com laços pessoais, familiares ou de amizade com determinadas associações ou com membros do ….


Fazer mestrados quando já se licenciou com 5 anos do curso de direito na Faculdade apenas é para dizer que sou mestre!???.

Todo o conhecimento jurídico é bom mas é a prática nos tribunais que faz um Mestre.

Lamentavelmente, são raros os acórdãos das Relações e do STJ memoráveis e bem redigidos, com argumentação e decisão irrepreensível e que dá gosto ler.

Quiçá por efeito dos tais ajudantes de primeira instância.


x , 28 Junho 2018 - 00:43:40 hr.

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