João Paulo Raposo - "Não basta dizer "não mexam no meu queijo". Ser Hem ou ser Haw, no longo prazo do judiciário, não é só uma questão egoísta e de ter ou não capacidade de procurar novos caminhos. Também é ter a coragem de defender o interesse público no dia de hoje."
Quem mexeu no meu queijo é um livrinho muito simples. Daqueles que tem vários níveis de leitura. Uma história infantil de ratinhos e duendes. Um manual prático de gestão que é referência obrigatória em qualquer mba ou master class.
Na história, ratinhos e duendes vivem num labirinto onde, num determinado posto, o C, está o queijo que necessitam para viver. Os ratinhos Sniff e Scurry, acordam de manhã e correm o labirinto até esse posto, pelo caminho que bem conhecem, onde está sempre o queijo que procuram. Os duendes Hem e Haw, com mais vagares, seguem-nos e acabam a apreciar do mesmo queijo nesse mesmo local. Até que, num belo dia, o queijo acaba. Não há mais queijo no posto C.
Sniff e Scurry lançam-se sem pensar para os lugares desconhecidos do labirinto à procura do queijo que perderam. Os duendes Hem e Haw duvidam, receiam e resistem a trilhar esses caminhos ignotos. Até que Haw decide vencer as suas dúvidas e medos e segue pelo desconhecido à procura do muito desejado queijo. Hem resiste e teima em ficar. Volta, dia após dia e para sempre, ao mesmo posto C, na esperança de que reencontrar o queijo que aí havia outrora.
Claro que, no final, Haw reencontra os ratinhos num novo lugar, o posto N, onde há queijo em abundância. Hem fica perdido no posto C, esperando por algo que já não voltará.
O objetivo de lembrar esta historieta de Spencer Johnson não é, propriamente, o de suscitar uma psicanálise individual para cada um procurar o Sniff, o Hem e o Haw que tem dentro de si. É para olhar algumas notícias recentes da justiça e, com estas, tentar olhar um pouco mais longe.
Foram duas as notícias desta semana que, à primeira vista, pouco ou nada terão que ver entre si. Um terceiro facto recente ainda parece ter menos que ver com qualquer delas. Na verdade, as três estão profundamente ligadas. Olhando-as, conseguimos ver, com uma nitidez cristalina, o labirinto, o queijo, os Hems e os Haws desta história da justiça.
A primeira notícia é o chamado "pacote para a justiça" apresentado pelo CDS. A segunda notícia é a divulgação feita pelo Conselho Superior da Magistratura de uma melhoria significativa nas pendências processuais e nas "taxas de resolução". O terceiro elemento, de contexto, é o "pacto para a justiça", o acordo celebrado no início do ano pelas profissões do judiciário.
Peguemos, por ser especialmente simbólica e significativa, na primeira medida deste pacto: - A realização de um estudo sobre eventual unificação das jurisdições comum e administrativa- fiscal. Trata-se de uma interpelação a estudar este assunto, não mais que isso. Mesmo assim, a mera recomendação ao estudo já suscitou fortes resistências internas. A lógica, em muitos casos, é que é melhor nem dizer nada para não dar ideias… Deixem o queijo onde está…
Na verdade, tal hipótese deveria estar completamente estudada desde o ano 2004. Nessa altura fez-se em Portugal uma reforma da jurisdição administrativa e foi abandonado o modelo, que vem da revolução francesa, em que os tribunais administrativos decidiam os litígios entre particulares e entidades públicas quando estas atuassem com poderes de autoridade. Já não é assim e qualquer conflito particular-público é, desde esse ano, da jurisdição administrativa.
Existe agora uma equiparação clara nos quadros de pensamento das duas jurisdições. Ponderar e estudar uma verdadeira fusão é apenas refletir sobre formas de defesa do sistema público de justiça a médio e longo prazo. Não é pensar em tirar o queijo a ninguém. É pensar noutros caminhos, que podem, ou não, ser seguidos. Sobretudo, é trabalhar já hoje na defesa de uma justiça forte e prestigiada.
O pacote legislativo do CDS é claro como água. Propõe caminho bem diverso e nem é preciso estudar nada. A solução é desjudicializar. Remeter para a arbitragem processos administrativos e fiscais atrasados. Criar mecanismos concretos e alargados para resolver o problema dos tribunais fora dos tribunais. Esvaziar a justiça pública.
Não sejamos ingénuos, a par de boas intenções, há um lobby muito forte a operar. A procura de quota de mercado para a arbitragem tem aqui uma defesa evidente. A jurisdição administrativa e fiscal é um segmento com grande capacidade lucrativa privada. São muitos litígios, de muitos milhões de euros. Um negócio certamente bom para alguns mas que não afasta dúvidas consistentes sobre esta forma de resolução de litígios envolvendo interesses públicos não disponíveis.
Seja bom ou mau é, pelo menos, claro. Há alguém a trabalhar para carregar queijo para o posto que lhe interessa. Será que a atitude mais inteligente é apenas gritar: "Não façam isso! Deixem estar aí o queijo!"?
Entretanto, o Conselho Superior da Magistratura rejubila com resultados de pendência que divulgou. O Conselho dos Tribunais Administrativos também rejubilará quando tiver oportunidade para tanto. O trabalho está a produzir resultados. A justiça está a caminho de ficar "um brinco". Boas notícias, mas… Mas é preciso pensar o Posto C da justiça daqui a 20, 30 ou 40 anos.
Nessa altura já as dívidas de massa estarão completamente fora dos tribunais. As execuções civis estarão certamente desjudicializadas. Arrendamentos e inventários nem se fala. Litígios de família e menores possivelmente resolvidos em sedes administrativas, por profissionais da área da psicologia e da sociologia. Grandes litígios civis, administrativos e fiscais na arbitragem. O que sobra para a justiça pública?
Na verdade, fica a matéria criminal, alguma administrativa e mais algumas matérias residuais. Bagatelas e limpeza de pequenos litígios que não dão dinheiro a ganhar a ninguém. Nessa altura os tribunais estarão todos "um brinquinho", como nunca estiveram. Se calhar já não decidem é quase nada de relevante. Serão pouco mais que um símbolo social. Uma justiça "rainha de Inglaterra".
Não basta dizer "não mexam no meu queijo". Ser Hem ou ser Haw, no longo prazo do judiciário, não é só uma questão egoísta e de ter ou não capacidade de procurar novos caminhos. Também é ter a coragem de defender o interesse público no dia de hoje.
João Paulo Raposo | Sábado | 05-03-2018
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