Há muito que a sabedoria popular identificou uma das principais características da Justiça: “Cada cabeça sua sentença.” O provérbio assenta na perfeição aos processos de violência doméstica que chegam aos tribunais. Na jurisprudência nacional até o consumo de álcool por parte do agressor divide opiniões: tanto pode ser fator agravante como atenuante, segundo concluiu o Observatório Permanente da Justiça (OPJ) no “Estudo avaliativo das decisões judiciais em matéria de violência doméstica”, que será publicado pela Comissão para a Igualdade de Género.
O trabalho realizado pelo OPJ incidiu não só na análise de várias sentenças relativas a violência doméstica como também em entrevistas sob anonimato com magistrados judiciais e do Ministério Público, os quais partilharam com os investigadores várias fraquezas do sistema e deles próprios. Se há casos como um recente no lYibunal da Relação de Évora, em que os juizes consideraram que “agarrar o pescoço” e empurrar não é violência doméstica, outros há que nem sequer é necessário existir violência física para que um homem seja condenado pelo crime em causa.
“Dirigir, com frequência não apurada, as expressões ‘porca de merda’ e ‘atrasada mental’ à pessoa com quem se vive em união de facto, assim a rebaixando, é, na normalidade dos casos, suficientemente grave para ofender a saúde psíquica e emocional da vítima, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana, assim representando um aviltamento e humilhação da vítima, o que, claramente, não são suficientemente protegidas [as expressões] pelo tipo de crime de injúria, pelo que integram o conceito de maus-tratos psíquicos e, portanto, preenchem os elementos do tipo da violência doméstica”, decidiu, em abril de2015, o Tribunal da Relação de Lisboa.
“Este é o crime que, para mim, é o mais complicado de julgar. Porquê? Por causa das relações que existem entre pessoas”, disse ao OPJ um juiz. Em primeiro lugar, vejamos as circunstâncias do crime: na esmagadora maioria dos casos, tudo se passa “entre paredes”, apenas com duas pessoas como protagonistas (havendo situações em que os filhos são testemunhas). Logo, todo o processo judicial estará centrado nas declarações e na respetiva credibilidade da vítima. E aqui começa um dos problemas do sistema: todo o processo fica alicerçado nas declarações que a vítima preste, quer na fase de inquérito quer em julgamento. Uma situação que merece reparos por parte do Observatório da Justiça: “A vítima não pode ser processualmente responsabilizada por ter de acautelar a prova da própria vitimização”, referem os investigadores, para quem o sistema deve conjugar o máximo de esforços para recolher prova noutras direções.
A realidade, porém, demonstra o contrário, com a quase totalidade das decisões a fundamentarem-se nas declarações da vítima. E aqui reside outro problema: fala ou não fala, como e quando deve falar? Os depoimentos recolhidos pelo observatório revelam alguma insensibilidade por parte do sistema judicial no acolhimento inicial da vítima, que começa por ser ouvida na polícia mas que, para efeitos de validade processual, acaba por ser obrigada a repetir o que disse perante um magistrado. “Pensei que ia atravessar aquele gabinete para ir para outro, reservado”, disse uma vítima quando se viu sentada num gabinete “com várias pessoas” que iam ouvir a sua história”.
Entram depois em cena os chamados “valores culturais” de quem ouve a vítima, neste caso um funcionário judicial: “A determinada altura, o funcionário perguntou- -me insistentemente se eu queria desistir do processo. Eu estava cheia de raiva. Estava humilhada, estava a sentir-me completamente humilhada. E dizia-lhe que não. E ele ainda teve este género de comentário: Agora até já tem namorado…”, relatou uma vítima aos investigadores do observatório.
A insensibilidade judicial é ainda retratada no estudo por outra vítima. Depois de ter apresentado queixa, o marido foi chamado a prestar dedarações.Àfrente da procuradora indignou-se com o facto de estar ali na qualidade de suspeito. “Então essa filha da puta veio participar de mim? Agora, quando eu chegar a casa, vou fodê-la, agora é que vai participar de mim, mas com razão. Esta noite ela vai dormir debaixo da ponte”, disse o suspeito, constando as suas declarações de um auto. A procuradora, relatou a vítima, entrou de imediato em contacto consigo. Porém, questiona o Observatório Permanente da Justiça, neste caso “por que razão a possibilidade de detenção do indivíduo não foi colocada? A sua reação à queixa não indiciava fortemente continuação da atividade criminosa?”
Daí que uma das principais recomendações do OPJ seja uma aposta cada vez maior na formação “multidisciplinar” dos magistrados judiciais e do Ministério Público (ver entrevista), porque para a análise da prova “concorrem vários fatores: valores culturais dos magistrados; a forma como vêem as relações sociais; a formação que lhes é ministrada na sua aprendizagem profissional; campanhas de sensibilização para a violência doméstica”. Tudo isto, sintetizam os investigadores, mais a autoaprendizagem, contribuiu para aquilo a que as decisões judiciais denominam como “regras da experiência ou padrões de normalidade”, fatores que influenciam decisivamente a convicção dos julgadores.
Ao mesmo tempo, deve ser promovida uma mudança de paradigma na comunicação dos tribunais com os cidadãos, deixando de tratar tudo como “igual” quando as matérias são diferentes. “A comunicação do ter, o do inquérito, seja para arquivamento seja para acusação, através de uma carta pejada de jargão jurídico para muitos impercetível, é encarada pelas vítimas como a tradução da menorização do tratamento que lhes é dado pela máquina impessoal dos sistema judiciário”, lê-se no “Estudo avaliativo das decisões judiciais em matéria de violência doméstica”.
A “psiquiatrização” do arguido
Isto leva-nos a outro tópico do estudo: a psiquiatrização do arguido. “Do conjunto de sentenças analisadas, verifica-se alguma tendência para uma abordagem da violência doméstica como sendo basicamente uma questão de saúde mental”, refere o documento, alicerçando este julgamento nos depoimentos recolhidos junto dos magistrados. “Se nós olharmos para o agressor, ele também não quer ser assim. Ele não quer, arrepende-se a seguir, e volta, portanto, ele tem ali qualquer coisa externa que o impele a fazer aquelas coisas”, referiu uma juíza desembargadora.
Além de que, continua o estudo, “a justificação do consumo de álcool e o lugar que o alcoolismo ocupa no discurso das magistraturas como justificante da prática do facto ilícito é por de mais evidente”, concluem os investigadores, citando uma das decisões analisadas: “O arguido encontra- -se inserido social e profissionalmente, sendo reconhecido como um bom pai e marido quando não está alcoolizado, contando com o apoio incondicional da ofendida e dos filhos para a recuperação do alcoolismo.”
A lógica judicial na abordagem a estes casos revela ainda aquilo que o observatório denominou como “sexismo jurídico constitucional”: “Atenua as necessidades de prevenção, dado que terá sido perante uma situação desrespeitosa da ofendida para com o arguido que os mesmo praticou os factos”, segundo uma decisão de um tribunal, considerando que “toma a sua culpa mais leve” o facto de o arguido ter sabido que a ofendida “havia tido relações sexuais com outros homens”. Refere o observatório que tal foi “usado também para justificar a suspensão da pena”. Porém, nas agravantes, o facto de ter sido dado como provado que o arguido retirava “vantagem da vulnerabilidade psicológica da vítima” não foi considerado na decisão final.
Uma justiça de classes
Outra das questões analisadas no estudo prendeu-se com a relação entre as penas aplicadas e a condição social dos arguidos. Quanto mais alta, menor a probabilidade de ter uma condenação severa ou, durante o inquérito, uma medida de coação pesada. Como referiu um juiz, é a velha história da “inserção social”: “O nosso sistema é um sistema de classes e isso vê-se na instrução criminal. Se eu tiver lá um indivíduo que faz um desfalque de dois milhões mas está socialmente inserido, tem um bom emprego, casa, família, o perigo de fuga, se calhar, não é muito. Paga uma caução e vai-se embora. Mas se tivermos lá um desgraçado que não tem poiso certo, não tem emprego, não tem isto… não tem nada… com um pena destas, ele previsivelmente vai fugir… é um direito de classe. Às vezes é difícil ultrapassar isso”, descreveu um juiz.
“Sabemos”, diz o observatório, que as situações são diferentes e o “direito aplicado ao caso concreto”. Mas as decisões “denotam uma ausência de reflexão” sobre a matéria da violência doméstica, “o que permite uma maior permeabilização a discursos dominantes”, conclui o estudo.
Conceição Gomes: “À vítima não basta a sanção do agressor”
Conceição Gomes é investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, coordenadora executiva do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa e da Unidade de Formação Jurídica e Judiciária. Coordenou o “Estu doavaliativo das decisões judiciais em matéria de violência doméstica”, realizado pelos investigadores Paula Fernando, Tiago Ribeiro, Ana Oliveira e Madalena Duarte.
O Estudo conclui que o processo judicial depende demasiado da vítima. Isto não é uma segunda forma de violência?
O que nós dizemos é que têm de se encontrar outras estratégias, que não façam o processo depender tanto da colaboração da vítima. Há muitos condicionamentos, sejam de ordem social ou cultura, que levam a que as pessoas não queiram prestar depoimento. Nem sempre há estruturas de apoio para estas pessoas, que estão em situação de grande vulnerabilidade social, psicológica, económica. Por vezes, a família também não as apoio. A so ciedadee o Estado também não lhes dão o apoio necessário para que se sintam confiantes em prestar declarações. Percebo que para as polícias e para os magistrados seja uma frustração. Também é preciso que compreendam por que razão é que a vítima se comportou dessa forma.
E depois tudo parece ficar dependente da mundividência dos juizes.
Sim. Tem de haver muita formação. Os valores culturais influenciam toda a gente: quem investiga, quem julga, quem é julgado, quem defende. Por isso, às vezes, encontramos decisões estranhas. E isto não pode mudar por decreto, tem de haver muita formação e não apenas com conhecimentos técnico-jurídicos. Formação é um espaço de reflexão entre diferentes saberes, troca de ideias, partilhar perspetivas. Estes casos não podem ser olhados apenas pela questão técnico-jurídica. São problemas que têm de ser olhados numa perspetiva multidisciplinar. O problema é encaixar a vida real nos códigos. Os códigos dão a solução jurídica para um determinado caso concreto. À vítima não lhe basta a sanção do agressor. É preciso olhar para outros problemas. Hoje, noutros países, discute-se como resolver o problema no seu conjunto. O tribunal dá uma resposta, mas esta resposta tem de ser mais articulada.
Talvez mais preocupação com a reparação da vítima e não apenas com a punição do agressor.
Exatamente. Como é que dou resposta à vítima. Já está a ser feito um caminho, com a medida de afastamento da casa por parte do agressor. Antigamente, era a própria vítima quem saía da casa de família. Mas isto tem de ser mais forte. É preciso não desvalorizar determinadas situações achando, por exemplo, que uns murros e pontapés não são assim tão graves, ou dizendo que uma injúria também não é assim tão grave.
No fundo, começar por condenar à partida a própria ideia de violência em si.
Sim. E não ser contemplativo com qualquer tipo de violência e colocar as pessoas em situação de igualdade, não desculpando determinados comportamentos praticados.
Carlos Rodrigues Lima | Diário de Notícias | 31-01-2017
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