Faltam pórticos de segurança e detectores de metais, celas sem sistema de alarme de incêndios, obrigatório por lei, e baldes para apanhar a água da chuva. Este é o dia-a-dia nos tribunais. Escasseiam juízes e procuradores, mas sobretudo funcionários judiciais, carência que se tornou crónica praticamente em todo o país.
Se uns problemas parecem caricatos, outros podem vir a ter consequências dramáticas. Todos os anos os dirigentes das 23 comarcas judiciais em que o país está dividido fazem um retrato da vida nos tribunais tal como ela é: repleta de carências. Os mais recentes relatórios de actividades, que respeitam ao período entre o final de 2015 e o Verão de 2016, espelham, em maior ou menor grau, o estado degradante em que têm de funcionar muitas instalações judiciais. Vários destes dramas logísticos – que contribuem com a sua quota-parte para a falta de celeridade mas também para fazer baixar o nível de qualidade da justiça portuguesa – constituem infracções legais. Na comarca-piloto de Sintra, porém, foram solucionados de forma aparentemente simples. Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Justiça remeteu-se ao silêncio.
“Faltaram, desde o primeiro momento, os mais elementares meios e equipamentos para uma normal gestão da comarca”. Quem assim fala não está sequer no abandonado interior, afastado dos grandes centros urbanos: a reclamação é do presidente da comarca do Porto, Rodrigues da Cunha, que, no relatório de actividades referente ao ano judicial transacto, conta como os dirigentes desta circunscrição judicial se viram obrigados a colocar ao serviço da comarca bens e recursos próprios, por não lhe terem sido fornecidos nem veículos de serviço nem telemóveis.
Escasseiam juízes e procuradores, mas sobretudo funcionários judiciais, carência que se tornou crónica praticamente em todo o país. No caso dos oficiais de justiça, a sua falta “é de tal modo dramática e os seus efeitos negativos de tal modo profundos que dificilmente será possível recuperar das suas consequências a curto prazo”, avisa.
Algumas das situações chocantes que relata, admite constituírem infracções à lei: por exemplo, as celas do Tribunal de Execução de Penas, na Rua João das Regras, onde também se encontra instalada a secção de Pequena Criminalidade, “não têm sistema de detecção de incêndio, o que já causou alguns problemas.” Na primeira secção de Família e Menores, na Rua Barão Forrester, “a água entra através da cobertura, havendo necessidade de colocar baldes em pontos estratégicos para fazer a sua recolha e evitar a inundação dos espaços”. A humidade resultante destas infiltrações “provoca frequentes curto-circuitos e avarias nos quadros eléctricos”, sendo “persistente o cheiro a mofo nos gabinetes dos magistrados e nas secções de processos”. Noutros edifícios do Porto, onde também chove, há celas que “não obedecem ao regulamentado”, observa, acrescentando que a cobertura de amianto das instalações judiciais da Póvoa do Varzim continua por substituir.
Aqui, “devido ao prolongamento das diligências fora das horas de expediente, por diversas vezes pessoas estranhas aos serviços, entram e saem do edifício para saber informações ou utilizar espaços como o WC, porque a porta do edifício se encontra aberta e o átrio sem qualquer vigilância”.
Rodrigues da Cunha não é o único a dar conta de insólitos. Em Braga a sala de audiências do Tribunal do Trabalho serve também para a realização de exames médicos, “por falta de outro local apropriado para o efeito.” Em Anadia, no distrito de Aveiro, chegaram no passado a ter de ser interrompidos julgamentos por as pessoas não aguentarem o frio. O presidente desta comarca, Paulo Brandão, diz que alguns dos tribunais desta comarca se socorrem não só de radiadores a óleo como de escalfetas - aquecedores para os pés – para suportarem os rigores do Inverno que entram portas adentro. Esta nem constitui, porém, a principal preocupação do magistrado, que teme que se um dia o fogo assolar o velho edifício do tribunal de família e menores de Aveiro, cuja sala de audiências é no primeiro andar, quem aí esteja na altura fique encurralado.
A inexistência quase generalizada de pórticos de segurança ou de meros detectores de metais, mesmo em instalações onde trabalham magistrados que investigam criminalidade violenta, constitui outra falha de segurança grave. Paulo Brandão descreve a ocorrência frequente de episódios de agressividade e de violência, “que não poucas vezes acabam por envolver magistrados e funcionários”. Os funcionários de vigilância ou agentes das forças policiais também são considerados insuficientes em várias comarcas.
“É necessária a substituição do sistema de videovigilância [do Palácio da Justiça de Leiria], que se encontra obsoleto e sem proceder à gravação de imagem”, reclama a presidente daquela comarca. No capítulo dos equipamentos, o panorama não fica a dever nada ao das infra-estruturas. Um dos adjectivos que mais povoa os relatórios de actividades é “obsoleto”, e aplica-se tanto a computadores como a impressoras.
“No que diz respeito a impressoras, a situação é de completa ruptura, tendo a maioria atingido há muito o limite da sua vida útil e sendo frequentes as avarias. A sua inoperacionalidade, que normalmente dura alguns dias, acaba por condicionar grandemente a eficiência dos serviços”, refere o relatório da comarca do Porto, que diz também que, como não conta com nenhum programa de gestão de stocks, recursos humanos ou de cadastro de bens, “a tarefa de gestão da comarca, no que a essas matérias diz respeito, dificilmente poderá passar do mero amadorismo, com os sérios riscos e falhas que daí podem advir”.
Algumas das situações assumem contornos quase escatológicos. Évora teve de reportar infiltrações na sede da comarca, “uma no wc da Instância Central Cível e Criminal (esta resultante do esgoto do lavatório) e nos gabinetes da senhora magistrada do Ministério Público Coordenadora, do senhor administrador judiciário e do apoio aos órgãos de gestão (estas provenientes dos tubos de queda, provavelmente entupidos)”. Os tribunais de Paços de Ferreira e de Marco de Canavezes, por seu turno, não estão sequer ligados à rede de saneamento público: funcionam com fossas sépticas.
O Palácio da Justiça de Ponta Delgada teve de ser desinfestado, por causa de uma praga de baratas. O presidente da comarca explica que as condições climatéricas do arquipélago propiciam o fenómeno. Embora o problema pareça ser de dimensões reduzidas, no continente é mais fácil encontrar roedores, em vez destes insectos, a passearem-se por entre a papelada processual.
O presidente da comarca de Beja, que no passado ano judicial teve de se desenvencilhar com apenas 60% dos funcionários judiciais que lhe deviam estar adstritos, afirma ser “altamente pernicioso” que as comarcas estejam dependentes do Ministério da Justiça mesmo para pequenas reparações urgentes de custos insignificantes. Contudo, na comarca-piloto de Sintra, que dá pela designação oficial de Lisboa Oeste, tudo rola sobre rodas, a acreditar no seu administrador judiciário. A experimentar novas formas de funcionamento, a comarca conta com três zeladores residentes, vindos de uma empresa de manutenção. “Primeiro só estava abrangido o Palácio da Justiça de Sintra, mas conseguimos, pagando o mesmo, estender os seus serviços a todos os edifícios da comarca”, orgulha-se este oficial de justiça. “Seremos, provavelmente, uma referência para o resto do país. Sem isto, acho que nem conseguia gerir o tribunal.”
O QUE DIZEM OS RELATÓRIOS
Coimbra
“No município de Coimbra, com excepção da secção de família e menores, todas as demais secções se encontram em espaços inadequados. No edifício do Arnado as condições de insonorização dos espaços são totalmente insuficientes. A localização (num centro comercial) e a divisão interior do espaço são inapropriadas.”
Sesimbra
“A Instância Local de Sesimbra está alojada num prédio de habitação. O acesso dos presos ou detidos faz-se pela porta de entrada do edifício, que é serventia comum aos residentes do prédio. O acesso por transporte público é difícil e em algumas horas do dia inexistente.”
Évora
“Os Palácios da Justiça de Estremoz, Montemor-o-Novo, Redondo, Reguengos de Monsaraz e Vila Viçosa encontram-se afectados por colónias de pombos/andorinhas, situação grave de saúde pública para os funcionários e magistrados que trabalham nesses espaços, bem como para os cidadãos que ali se deslocam.”
Madeira
“Na comarca da Madeira continuamos com falta de digitalizadores, aparelhos de videoconferência e de telefones.”
Ponte de Lima
“No átrio do tribunal de Ponte de Lima haverá necessidade de intervenção no gradeamento das escadas, pois o gradeamento existente apresenta aberturas muito acentuadas, com espaços para além do aconselhável. Potencia, assim, o perigo de crianças caírem do piso 2 para o piso 1, através dos espaços existentes.”
Bragança
“Foi levada a cabo a substituição do sistema de gravação da sala de audiências do piso 1 do edifício principal do núcleo de Bragança, tendo sido instalado um sistema que tem revelado deficiências que já deram azo a problemas processuais diversos. As insuficiências dos demais aparelhos de gravação não se mostram debeladas.”
Alijó
“Na Instância Local de Alijó mostra-se necessário intervir no telhado; há muitas infiltrações de água. Quanto ao aquecimento, o edifício está equipado com caldeira a gasóleo que se mostra inoperacional, há vários anos. Possuindo as instalações um vão muito alto, os meios alternativos de aquecimento não são eficazes e há necessidade de serem usados com muita moderação em virtude da queima de oxigénio no que se refere ao gás e à potência da corrente eléctrica quanto aos restantes. De referir as temperaturas muito baixas que se fazem sentir de Inverno e as elevadas no Verão.”
Chaves
“Na Instância Local de Chaves não há contrato de manutenção dos aparelhos de ar condicionado. Os filtros encontram-se totalmente obstruídos.
Mandatos terminam em Abril mas ainda não há substitutos
Presidentes das comarcas deverão ter de se manter em funções quer queiram continuar ou não, por causa de atraso do Ministério da Justiça.
A dois meses de terminarem os mandatos da maioria dos dirigentes das comarcas judiciais, não foram designados substitutos para os juízes, procuradores e funcionários que estão à frente destas circunscrições territoriais em que se inscreve a rede de tribunais de primeira instância.
O problema radicará num atraso do Ministério da Justiça, ao qual compete indicar, através da Direcção-Geral da Administração da Justiça, quais os funcionários dos tribunais que poderão frequentar o curso para administradores das comarcas, ministrado no Centro de Estudos Judiciários.
A governação das 23 comarcas judiciais criadas em 2014 é tripartida: há um juiz, que preside, um procurador, que coordena, e um funcionário judicial, que administra a comarca. Estes dirigentes, que tomaram posse em Abril desse ano para um mandato de três anos renovável, vão ter de se manter em funções para lá do fim das suas comissões de serviço, quer queiram quer não, uma vez que os cursos, com uma duração de dois meses, ainda não começaram.
Tanto o Conselho Superior da Magistratura, responsável pela indicação dos juízes que vão frequentar o curso para se poderem candidatar a presidentes das comarcas, como o Conselho Superior do Ministério Público, ao qual cabe escolher os procuradores a formar como coordenadores destas circunscrições, já levaram a cabo esta tarefa. Perante o atraso, cujas razões o PÚBLICO tentou apurar de há um mês a esta parte junto do Governo, sem que tenha recebido qualquer resposta, o Conselho Superior do Ministério Público, cuja representante máxima é a procuradora-geral da República, pediu há uma semana à ministra da Justiça para “tomar as providências tendentes à realização, no mais curto espaço de tempo possível, do curso pelo menos no que aos magistrados do Ministério Público diz respeito”, mesmo que para isso tenha de ser feito posteriormente um curso para os candidatos a administradores, ou seja, para os funcionários judiciais. O órgão que representa os juízes terá tomado idêntica posição. O que implica despesas acrescidas, uma vez que o curso tem um tronco comum.
Numa nota na sua homepage, o Centro de Estudos Judiciários esclarece que não iniciou as acções de formação por circunstâncias a que é alheio, uma vez que ainda decorrem procedimentos relativos à regulamentação do curso e à selecção dos formandos.
Ana Henriques | Público | 05-03-2017
Comentários (6)
Exibir/Esconder comentários
...
...
...
...
Uma triste realidade que degrada a independência dos juízes dia após dia.
É vê-los (os ditos Presidentes) a propor ao CSM que juízes titulares passem a acumularem com outros juízos (porque este ou aquele juízo tem mais processos porque o colega esteve de baixa, ou não é muito produtivo), é vê-los a emitirem Ordens de Serviços (note-se desde logo na nomenclatura: ordens de serviço) sobre o uso das salas, sobre a organização da agenda, sobre a mudança de funcionários, etc. etc...
É triste, mas vivemos tempos horríveis na administração da justiça.
...
Se eu estiver errado que me desculpem e me corrijam. Gostava que alguém aprofundasse este tema da Holanda, pois temo que caminhemos para essa solução ou algo parecido.
Escreva o seu comentário
< Anterior | Seguinte > |
---|