Dois menores identificaram presumível assaltante alegando terem-no reconhecido num perfil na rede social Arguido foi condenado mas agora o Tribunal da Relação reverteu a sentença: é "bizarro o reconhecimento facebookiano".
Identificado pelas vítimas menores através de uma foto que encontraram no seu perfil do Facebook e pelos ténis Nike que usava, um jovem que tinha sido condenado no Tribunal de Sintra pela prática de um roubo a 20 meses de prisão, com pena suspensa, foi agora absolvido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Os juízes desembargadores consideraram que a identificação do arguido foi efetuada de forma condicionada pelas vítimas, de 13 e 14 anos, já que o apontaram como autor do crime após encontrarem na rede social, "por acaso e sem qualquer explicação plausível", a fotografia do arguido, e só depois é que foi realizado o reconhecimento presencial. Ora, os magistrados julgam que esta sequência "inquina de forma notória esse mesmo reconhecimento na sua validade substancial", e como tal decidiram absolver o arguido por não haver provas de que foi o autor do roubo.
O crime ocorreu em março de 2015 quando os dois menores circulavam numa rua na Tapada das Mercês, em Sintra, junto à Escola Visconde de Juromenha. Foram abordados por três indivíduos que exigiram a entrega de objetos de valor. Levaram apenas um telemóvel e fugiram. Às autoridades os dois rapazes indicaram que se tratavam de jovens de "raça negra e um caucasiano", lê-se no acórdão.
Os ténis Nike como prova
É sobre o jovem caucasiano, que vivia com o pai e estudava no 11.º ano, que incidem as suspeitas neste processo. Uma das vítimas mostrou "ter tido dúvidas quanto ao reconhecimento pessoal que fez do arguido, não o tendo conseguido reconhecer, sabendo apenas dizer que o mesmo usava uns ténis da marca Nike, modelo Air Max, o que também foi corroborado" pelo amigo que afirmou contudo "ter visto bem a cara do arguido, fixou-o bem e encontrou a sua fotografia no Facebook". Mas esta identificação pelas redes sociais só chegou à polícia três dias depois de o crime e os ténis da marca Nike serem apontados como um elemento que levou à identificação do suspeito. Só então se realizou o reconhecimento presencial e é sobre esta situação que o tribunal agora apontou como duvidosa. "A nossa lei processual penal não se refere ao reconhecimento fotográfico, enquanto meio de prova. E bem, na medida em que este ato não é, verdadeiramente, um meio de prova, mas uma técnica inicial de investigação: é um ponto de partida para a investigação propriamente dita; mas, em si mesmo, o seu valor probatório é, em princípio, nulo", diz o acórdão, assinado por três desembargadores, datado de 28 de setembro passado.
Os juízes centram aqui o "cerne da questão, que é no fundo, e no essencial, questionar a coerência da prova por se considerar in casu que toda ela assenta num "bizarro" reconhecimento fotográfico precedente aos reconhecimentos, e no caso dos autos "facebookiano de uma fotografia no perfil do arguido, com base no qual todo o processo se desenvolveu".
Como chegaram ao Facebook?
"Também não se consegue perceber como é que os ofendidos conseguiram chegar ao Facebook do arguido e assim identificar o mesmo através de uma fotografia de corpo inteiro e com uns ténis que vieram dizer depois que o arguido tinha calçados no dia dos factos", apontam os magistrados no acórdão, em que levantam ainda mais dúvidas: "Como e porquê conseguiram alcançar tal feito, face ao universo incomensurável do Facebook, não sabemos, persistindo dúvidas sobre a fiabilidade de tal reconhecimento do arguido através de uma fotografia postada no seu perfil do Facebook, sendo que evidentemente uma margem de erro aqui sempre se vislumbra, ou dúvida, porque é que têm tantas certezas de ser aquele o autor dos factos ilícitos? Tal facto não ficou devidamente explanado nem fundamentado com bases sólidas. E anote-se ainda que os ofendidos eram muito jovens à data dos factos, pois tinham 13 e 14 anos, logo mais atreitos a ficarem sugestionados."
Se em primeira instância o testemunho dos dois menores foi considerado válido e o arguido, que sempre negou a autoria dos factos, acabou condenado, na Relação e, perante a contestação em recurso, os desembargadores concluíram que "não foi o arguido um dos autores dos factos dados como provados" e procederam à sua absolvição.
David Mandim | Diário de Notícias | 12-11-2017
Nota InVerbis:
O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28-09-2017, a que a notícia faz referência, pode ser acedido, em texto integral, nesta ligação.
Sumário:
«I- A prova por reconhecimento é, como se sabe, um meio de prova especialmente problemático e falível quando não sejam tomadas as devidas precauções. Por isso mesmo, as respectivas formalidades são estabelecidas na lei sob pena de invalidade (nº 7 do art. 147º, CPP). Assim, a existência de um reconhecimento positivo é um dos meios de prova que, quer entre nós, quer em muitos países estrangeiros, mais influencia os tribunais no sentido de afirmar a culpabilidade da pessoa assim identificada, sobretudo quando a pessoa que efectuou o reconhecimento afirma a sua convicção sem margem para dúvidas, pois o reconhecimento é, como se sabe, um meio de prova especialmente problemático e falível quando não sejam tomadas as devidas precauções;
II- A força probatória de tal diligência não pode deixar de considerar-se fortemente condicionada pelos termos, mais ou menos rigorosos, em que decorra e das circunstâncias que a precederam, mesmo que não se questione a sua validade em termos formais;
III-Assim, o reconhecimento do arguido nos termos do artigo 147º do C.P.P., precedido de um rastreio particular feito pelos ofendidos no “Facebook”, local onde “ encontraram”, por acaso e sem qualquer explicação plausível, o perfil como também a fotografia do mesmo (pré-reconhecimento ocular dos ofendidos de tal fotografia, à data com 13 e 14 anos de idade), a qual visionaram repetidamente e a fizeram juntar aos autos, antes de procederem à diligência prevista no artº 147º do C.P.P., inquina de forma notória esse mesmo reconhecimento na sua validade substancial;
IV- Decorre do princípio “in dubio pro reo”, que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que, face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador, não podem dar-se como provados, e a decisão recorrida só será de alterar quando as provas produzidas não conduzam àquela factualidade, em que previamente “assentou”, e neste caso, o Tribunal “ a quo”, violando as regras da experiência comum, pelo que se verifica o inevitável vicio de conhecimento oficioso, previsto no artº 410 nº 2 al. c) do CPP, erro notório na apreciação da prova, e, não sendo caso de se proceder ao reenvio do processo para novo julgamento nos termos do disposto no artº 426º nº 1 do CPP, terá o Tribunal superior que proceder á modificação da matéria de facto de acordo com o disposto no artº 431 al. a) do CPP, suprindo tais vícios, e, tendo por consequência “in casu”, a absolvição do arguido».
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