Diplomas entram em vigor e ficam anos à espera que o Governo regulamente alguns aspectos da lei ou o seu objecto fundamental, pondo em causa a sua aplicação prática. 2015 é o pior ano Legislação.
O processo de fazer uma lei, tenha ele início no governo ou na Assembleia da República (AR), nem sempre se esgota com a sua publicação e entrada em vigor. Há leis que precisam de regulamentação que pode condicionar apenas uma pequena parte da sua aplicação prática ou toda ela.
De acordo com as contas feitas pelo PÚBLICO a partir de um relatório dos serviços da Assembleia da República, estão por regulamentar cerca de 90 leis referentes ao período entre 2003 e Setembro do ano passado, incluindo as dos recentes Orçamentos do Estado, que contêm sempre diversas autorizações legislativas dadas pelo Parlamento ao Governo para regulamentar medidas.
O Estatuto do Bolseiro de Investigação de 2004, por exemplo, já foi alvo de três revisões, mas 13 anos depois continua por regulamentar o acesso pelos bolseiros a cuidados de saúde, embora o restante regime esteja em vigor. Já a lei que estipula um programa especial de apoio social para a ilha Terceira (majorações no subsídio de desemprego, abono de família e rendimento social de inserção) para compensar a redução da presença dos EUA na Base das Lajes, aprovada em Abril de 2016, continua sem ser aplicada, porque ainda está "em circuito legislativo do Governo", segundo o gabinete do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. A aplicação dos apoios está pois por regulamentar (ver página 6). Outro caso é o da universalidade do pré-escolar a partir dos quatro anos, que devia ser regulamentada até fim de Janeiro de 2016 para entrar em vigor em Setembro, mas que está à espera da decisão sobre a data para a universalização aos três anos, diz o secretário de Estado.
Da PJ às touradas
Estes são apenas três exemplos dos problemas levantados pela falta de regulamentação das leis por parte do executivo. Há mais matérias que foram ficando "coxas" por não estarem completas, como é o caso da lei que estabelece as medidas de protecção da orla costeira e a lei de bases da protecção civil (2006); o regime jurídico das instituições de ensino superior (2007); a orgânica da PJ (2008); as indemnizações às vítimas de crimes violentos e violência doméstica (2009); sigilo bancário, prática de naturismo (2010); remoção do amianto de edifícios públicos, certificação de maquinistas (2011).
O Governo PSD-CDS também deixou muitas leis aplicadas a meio-gás: entre outras, sobre prestação de serviços postais, reabilitação urbana, a lei de bases dos cuidados paliativos, a classificação de arvoredo de interesse público, a bolsa de terras (2012); regime financeiro das autarquias e entidades intermunicipais, ensino da condução, regime da fiscalidade verde (2014); comércio internacional de diamantes, funcionamento do Conselho das Comunidades Portuguesas, actividade de artista tauromáquico, contribuição extraordinária sobre o sector energético, lei de bases da protecção civil, funcionamento das casas de acolhimento de crianças e jovens em perigo (2015).
Às vezes, os partidos tentam contornar o problema na AR: PSD, BE e PCP propõem mudar a lei da nacionalidade do Governo de Passos (não regulamentada), para permitir que filhos de estrangeiros a trabalhar em Portugal ou netos de portugueses nascidos no estrangeiro possam ter nacionalidade portuguesa.
Não há dinheiro, não há lei
Ora, e quem pode regulamentar uma lei? Depende do membro do Governo que o próprio texto da lei indicar, mas é normal que um dos governantes seja o da pasta da Finanças - porque há muitas questões que exigem despesa adicional. Um caso: o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas das Liberdade prevê que os detidos sejam pagos por frequentarem cursos de ensino ou fazerem trabalho de manutenção para o estabelecimento prisional, mas esses subsídios não foram ainda definidos, porque se "aguarda oportunidade financeira para o efeito" - não há dinheiro, não se legisla.
A larga maioria das leis que estão por regulamentar ou estão apenas parcialmente regulamentadas não tinha prazos estipulados para isso factorque também contribui para um maior desleixo. De acordo com o relatório da Divisão de Informação Legislativa e Parlamentar que abarca o período entre a IX legislatura (2002/2005) e Setembro do ano passado, o ano mais problemático foi o de 2015, que poderá explicar-se pelo facto de ter havido eleições e o executivo anterior ter adiado a regulamentação. O actual Governo mudou alguns procedimentos na forma de legislar: por norma só faz um conselho de ministros deliberativo por mês e os seus decretos-lei são aprovados já com a regulamentação. Mas as suas propostas de lei ainda têm de passar pelo Parlamento e é deste que acabam por emanar todas as leis.
Um exemplo: no Verão de 2015, na pré-campanha legislativa foi publicada a lei que obriga à atribuição de médico de família às crianças logo à nascença, mas só entrava em vigor em 2016. Acabou por ser o actual Governo a regulamentá-la em Agosto passado. Mantendo o objectivo de não fazer legislação desnecessária, este executivo tem aprovado menos leis do que o anterior e, segundo o socialista Pedro Nuno Santos, estão a ser analisadas as que falta regulamentar, prometendo novidades ainda este ano.
Depois, há os casos em que a lei tem prazos, mas o Governo não os cumpre. O actual está em falta no Plano Nacional de Prevenção e Controlo de Doenças Transmitidas por Vetores (insectos portadores, por exemplo, de dengue e zika), na rede de centros de recolha oficial de animais e proibição de abate de animais vadios, no regime de apoio à agricultura familiar nos Açores e na Madeira. Já fora de prazo, regulamentou o alargamento da procriação medicamente assistida, o incentivo fiscal à produção cinematográfica ou a renovação dos contratos dos médicos internos. No prazo, regulamentou o regime de comunicação à Autoridade Tributária das transferências financeiras para paraísos fiscais que transpôs directivas sobre troca automática de informações fiscais e contas bancárias.
Maria Lopes | Público | 20-03-2017
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