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REVISTA DE 2017

Governante vive em casa para magistrados

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Juíza contesta em tribunal atribuição de casa a secretária de Estado Adjunta e da Justiça. Diz que decisão é ilegal e viola princípio da transparência. Instituto que atribuiu a habitação é tutelado pela governante.

Uma juíza colocada há vários anos em Cascais apresentou em Fevereiro uma acção no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra a pedir que seja anulada a atribuição de uma casa do Ministério da Justiça, em Cascais, à secretária de Estado adjunta e da Justiça, Helena Mesquita Ribeiro. A magistrada diz que a disponibilização da habitação à governante é ilegal.

Está em causa, diz na acção à qual o PÚBLICO teve acesso, uma casa que “sempre foi habitada por juízes a exercer funções na comarca de Cascais”. E o ministério confirma que sempre foi esta a sua utilização. Helena Mesquita Ribeiro não desempenha actualmente funções de magistrada, apesar de ser juíza de carreira. Tomou posse no actual Governo em Novembro de 2015.

A juíza que recorreu ao tribunal diz que o processo de atribuição da casa, localizada no centro de Cascais, tem várias ilegalidades e viola vários princípios, incluindo o da transparência. Algo que o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ), tutelado por Helena Mesquita Ribeiro, contesta, considerando a acção desprovida de fundamento.

Em resposta a várias perguntas do PÚBLICO, o ministério insistiu que “não existem casas de função especificamente destinadas a magistrados”, mas apenas “um conjunto de imóveis cuja gestão se encontra confiada ao IGFEJ e que se destina a fazer face às necessidades do ministério, sejam elas quais forem, em cada momento”. Questionada pelo PÚBLICO através da assessoria de imprensa do ministério, a secretaria de Estado não se pronunciou.

Em Agosto passado, a magistrada requereu que lhe fosse atribuida a casa. Nessa altura foi informada de que a habitação já se encontrava ocupada. O ministério reconheceu ao PÚBLICO que o imóvel esteve “desde o seu início” até 12 de Abril de 2016 ocupado por “magistrados”, altura em que ficou vago, sendo habitado pela governante desde 1 de Julho desse ano. Adiantou ainda que além do pedido da juíza queixosa recebeu um de outro magistrado “em 12/10/2016, indeferido pela mesma razão”.

Helena Mesquita Ribeiro tem residência permanente em Amarante e encontra-se deslocada em Lisboa. Por isso, pediu em Dezembro de 2015 à ministra da Justiça, Francisca van Dunem, que lhe fosse autorizada a “atribuição de habitação por conta do Estado”, um direito previsto num decreto-lei de 1980, entretanto revisto, e que abrange os “membros do Governo que não têm residência permanente na cidade de Lisboa ou numa área de 150 quilómetros”. O hábito tem sido, porém, o da concessão de um subsídio a estes governantes.

Ministério atribui duas casas
A ministra autorizou a atribuição da casa a 16 de Dezembro de 2015 e, a 22 desse mês, o IGFEJ afectou ao gabinete da secretária de Estado um apartamento, localizado em Loures, vazio desde 2007. A 6 de Junho do ano passado, sem que tal fosse formalmente pedido, os serviços do instituto propõem que a governante mude para uma casa de Cascais, que ficara devoluta em Abril com o falecimento do juiz que a habitara mais de uma década.

Uma funcionária justifica a sugestão com o facto da casa, situada perto do mercado de Cascais e a uma curta distância do tribunal, ter “características e tipologia mais adequadas à satisfação” das necessidades e por, contrariamente ao apartamento de Loures, não se encontrar “em processo de alienação”. A 17 de Junho o conselho directivo do IGFEJ aprova a atribuição num despacho assinado só pelo seu presidente, Joaquim Rodrigues. A casa, garante o instituto, foi ocupada por Helena Mesquita Ribeiro em Julho. Só em Agosto de 2016 a juíza de Cascais pediu a atribuição desta mesma casa ao IGFEJ justificando que “recentemente” teve conhecimento do falecimento do colega, através da publicação de um obituário no site do Conselho Superior da Magistratura. “Inexiste outro juiz de direito em exercício de funções na comarca, com maior antiguidade na carreira (...) que pretenda a atribuição da referida casa de função de magistrados”, argumentou na carta que enviou ao presidente do IGFEJ.

Na missiva explicou que está colocada em Cascais desde 2009 e que nessa altura a casa de função já estava ocupada. Afirmou que perante a inexistência de outra habitação na comarca, arrendou um imóvel e passou a receber o subsídio de compensação que é agora de 620 euros.

O secretário-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), João Paulo Raposo, confirma que esta casa foi ocupada durante muitos anos por juízes. “O juíz que estava há mais tempo naquela comarca era o que ficava com a casa”, afirma. João Paulo Raposo adianta que a juíza de Cascais recorreu ao apoio jurídico disponibilizado aos associados da associação para interpor a acção, mas esclarece que a ASJP não tem qualquer intervenção no processo.

No final de Agosto do ano passado, o presidente do IGFEJ informou a juíza de que “a casa de função pretendida se encontra ocupada desde 1 de Julho” e compromete-se a informar a magistrada quando ficar disponível. A juíza não se conforma e a 6 de Setembro solicita uma cópia do processo de atribuição da casa. Mais tarde pede outros documentos em falta como o termo de entrega da casa, uma formalidade prevista na lei. Mas o instituto considera a formalidade cumprida com um auto de afectação emitido a 1 de Julho e assinado pelo presidente do instituto e pelo chefe de gabinete da governante.

Só a 25 de Outubro o instituto rejeita formalmente o pedido da juíza feito em Agosto, “em virtude de nessa data a casa não se encontrar disponível para atribuição”. Numa carta com seis páginas, na qual o IGFEJ faz uma análise exaustiva das casas que possui na zona, da sua ocupação e do estado de conservação, informa a magistrada de que “não dispõe de casas de função devolutas que reúnam condições de habitabilidade”. Isto porque as dez que se encontram vazias sofrem todas de “degradação e de anomalias”, que implicavam a realização de obras.

O princípio da transparência

Na acção judicial, a juíza pede a anulação da deliberação do IGFEJ que atribuiu o imóvel a Helena Mesquita Ribeiro e a que indeferiu o seu pedido, actos que considera “ilegais a vários títulos”. Argumenta que a casa “sempre foi habitada por juízes a exercer funções na comarca de Cascais”, onde foi sempre “muito pretendida”. Diz que pensa saber que a secretária de Estado habita a moradia “desde Setembro de 2016” e contesta desde logo não ter sido avisada de que o imóvel tinha vagado, o que, diz, viola o princípio da transparência. Sustenta que foi igualmente violado o princípio constitucional da participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes disserem respeito.

A magistrada, que refere ainda que “tudo aponta para não existir deliberação” do IGFEJ a “afectar a referida casa”, diz ainda que também “parece não existir a atribuição da casa em causa à secretária de Estado” — mas sim ao seu gabinete — e “parece não existir” o tal termo de entrega. “Tudo isto denota, claramente e além do mais, o desrespeito mais uma vez do princípio da transparência a que a Administração Pública deve respeito.”

O ministério insiste que “o IGFEJ não ‘classifica’, a priori, as casas de Loures ou de Cascais como casas de função para magistrados ou para outros agentes do Estado, porque pura e simplesmente não existe qualquer ‘classificação’ legal desse tipo”. Salienta que “uma casa que hoje esteja atribuída a um magistrado pode, amanhã, sê-lo à Polícia Judiciária, mais tarde a uma comarca para servir de arquivo, depois a um membro do Governo da área da Justiça”. E acrescenta: “Os usos passados são irrelevantes para esta questão — estes em nada determinam o uso que lhes é, mais tarde, atribuído.”


PRÁTICA ANTIGA "TEM VALOR JURÍDICO"

Especialista em Direito Administrativo diz que tribunal pode vir a dar razão a juíza que impugnou decisão do Ministério da Justiça atribuir casa para magistrados a governante.

Mesmo que não exista qualquer classificação destes imóveis como casas de magistrados, o professor de Direito Administrativo da Universidade de Coimbra, Licínio Lopes Martins, acredita que o tribunal pode vir dar razão à juíza que apresentou a acção de impugnação.

O docente universitário considera que, como a casa em causa foi utilizada ao longo de vários anos como casa de função de magistrados, existe uma prática administrativa antiga que foi abruptamente alterada sem aviso prévio. “Havia uma expectativa legítima dos juízes da comarca de que os procedimentos habituais se manteriam. Tendo sido alterados sem qualquer aviso prévio, a administração frustrou a confiança dos interessados históricos na casa”, considera o especialista em Direito Administrativo.

Sem discordar que juridicamente uma casa de função pode ser atribuída a qualquer pessoa que preencha os requisitos legais, Licínio Lopes Martins considera que a existência de uma prática administrativa antiga também tem valor jurídico. “Porque gera confiança nos eventuais interessados que as entidades administrativas vão pautar a sua conduta por essa prática”, defende. Por isso, compreende que a juíza que interpôs o processo alegue que nunca foi avisada de que a casa se encontrava vaga, o que não lhe permitiu formalizar antes o pedido de atribuição da habitação. “Não foram criadas as condições para em tempo ser exercida essa faculdade”, nota, sublinhando não ter dúvidas de que, se a juíza tivesse feito o requerimento antes da secretária de Estado, o mesmo teria sido deferido.


Justiça tem actualmente 147 casas devolutas

Actualmente, segundo dados do Ministério da Justiça, existem 232 casas de função no património daquela tutela, 147 das quais se encontram devolutas. A maioria estão desocupadas há vários anos e a precisar de obras substanciais, tendo o anterior Governo e o actual um plano para tentar vender uma grande parte deste património. "Das 85 ocupadas, apenas 12 são-no por magistrados", precisa o ministério em resposta a uma pergunta do PÚBLICO. As restantes, informa-se, encontram-se atribuídas a outros organismos públicos, como a Polícia Judiciária ou os serviços prisionais, tendo em alguns casos sido reconvertidas para arquivo dos tribunais ou para colocar os órgãos de gestão das novas comarcas.

Sobre o futuro destas casas, o Ministério da Justiça adianta que tem intenção de dar continuidade aos processos de alienação, iniciados já em 2005, "sem prejuízo de poderem ser cedidas algumas casas de função a outras entidades quando exista interesse público". Nos últimos cinco anos, foram emitidos 48 títulos de alienação (algumas casas germinadas integram um único imóvel) que renderam perto de 7,5 milhões de euros ao Estado.

Criação destas casas remonta a 1926
A maioria destas casas de função foram adquiridas ou construídas pelo Ministério da Justiça com o objectivo de alojarem magistrados, fossem juízes ou procuradores. Segundo um parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, de 1998, a imposição de fornecimento de casa mobilada aos magistrados remonta a um despacho de 1926, que determinava que “todos os municípios, com a excepção dos de Lisboa, Porto e Coimbra, são obrigados a fornecer, mediante o pagamento das competentes rendas, casas mobiladas para habitação dos juízes de direito e delegados do Procurador da República”. Essa obrigação passou mais tarde a ser assegurada pelo Ministério da Justiça

O mesmo parecer explica que esse direito estava associado a algumas obrigações impostas aos magistrados como a de habitarem na comarca onde prestam serviço, "como forma de garantir a sua total e absoluta disponibilidade para o serviço". Ainda hoje assim acontece, apesar de ser possível pedir a dispensa desta obrigação. Por outro lado, em algumas localidades não era fácil encontrar casas disponíveis, o que era agravado pelo facto de haver uma maior deslocação dos juízes forçados a mudar de comarca de tantos em tantos anos.

Esta obrigação manteve-se inalterada, com diferenças de pormenor, através dos tempos, constando ainda hoje nos estatutos das duas magistraturas. Isto apesar de, por motivos diversos, a utilização destas casas ter entrado em desuso e a esmagadora maioria dos magistrados optar por receber um subsídio de compensação no valor de 620 euros, não sujeitos a imposto. O montante já foi maior, mas foi reduzido em 20% no âmbito das medidas de austeridade e ainda não foi reposto.

O secretário-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, João Paulo Raposo, lembra que antigamente a maior parte dos juízes eram homens, que se deslocavam pelo país com a família atrás. "Hoje a maior parte são mulheres, que não levam os maridos consigo", nota.

Mariana Oliveira | Público | 26-03-2017

Comentários (1)


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De carreira? QUAL?
A notícia diz que a sra. governante é juíza de CARREIRA?
Qual CARREIRA?
Ver
http://www.portugal.gov.pt/pt/ministerios/mj/equipa/secretario-estado/helena-mesquita-ribeiro.aspx

«Foi Presidente da Assembleia de Freguesia de Oliveira, concelho de Amarante, entre 1998 e 2002, e diretora do Departamento Administrativo e Financeiro da Câmara Municipal de Penafiel, em 1999.

Deputada à Assembleia da República, entre 1998 e 2002, integrou as Comissões de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias e de Equipamento e Obras Públicas.

Foi vogal do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais entre 2004 e 2005.

Entre 2005 e 2009 foi Diretora-Geral da Administração da Justiça, sendo a coordenadora do grupo de trabalho que elaborou a proposta de reorganização do Mapa Judiciário de 2008.»

Mas... mesmo assim já é DESEMBARGADORA desde 2014! Claro que em 2015 passou novamente para o Governo que isto de estar nos tribunais a trabalhar é uma chatice e dá muito trabalho. Enquanto isso, juízes mais com mais de 25 anos sempre a trabalhar no tribunal de manhã à noite, fins de semana e afins sem qualquer remuneração adicional, nem têm casa atribuida, nem têm as benesses de viver com 1 pé de vez em quando no tribunal e os dois pés na política. Porque estar na política é que está a dar. Quero mesmo ver que ainda chega a ser CONSELHEIRA sem ter feito uma centena de acórdãos. Aliás, nem metade.
Muito Chá Rosa , 26 Março 2017 - 14:44:04 hr.

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