Entre 2015 e 2016 chegaram ao provedor de Justiça cerca de 20 queixas relacionadas com instituições que exigem a fotocópia do cartão do cidadão para prestar serviços. Lei que permite recusar a fotocópia data de 2007. Recomendação do Banco de Portugal permite aos bancos pedirem fotocópia do cartão do cidadão, mas para o Provedor de Justiça isso não se pode sobrepor à lei.
Abrir conta num banco é um procedimento comum. Basta preencher o formulário, depositar alguns euros e apresentar alguns documentos pessoais, incluindo o Cartão do Cidadão (CC). Muitas vezes, esses documentos são fotocopiados. É um gesto já habitual tanto em bancos como noutros serviços do dia-a-dia. Pelo menos desde 2007, a reprodução do CC não é permitida sem a autorização do titular. Ao provedor de Justiça, entre 2015 e 2016, chegaram perto de duas dezenas de queixas.
No balcão de uma agência da Caixa Geral de Depósitos, o banco público, testámos. Quando pediram para fotocopiar o CC, recusámos e aí começou a confusão. O funcionário não sabia muito bem o que fazer. Depois de se informar chegou com uma alternativa: recolher apenas os dados do CC e fotocopiar outro documento com fotografia (foi sugerida a carta de condução, o passaporte e o passe social). E se não tiver nenhum, como se abre a conta? “Com a sua autorização, teremos de utilizar o CC”, ouvimos. E não foi possível abrir a conta.
“As instituições não podem impedir o cidadão de adquirir algum serviço. Isto é uma tempestade num copo de água”, diz ao Expresso José de Faria Costa, provedor de Justiça. “Isto tem sido contestado veemente por todas as pessoas ligadas à questão.
erdadeiramente, a identificação é minha e, se não quiser dar a minha identificação, não posso ser impedido de ter qualquer serviço ou qualquer bem. É absolutamente claro. Não percebo porque se quer complicar aquilo que é um direito fundamental do cidadão”, acrescenta.
Pelo menos desde 2007 é ilegal a retenção, conservação bem como a reprodução do CC sem o consentimento do seu titular (salvo casos previstos na lei ou por decisão judiciária). Há três semanas foi aprovada, apenas com abstenção do CDS, a proposta de lei que prevê a aplicação de multas por parte do Instituto dos Registos e do Notariado. Para entrar em vigor, falta a promulgação do Presidente e a publicação em Diário da República.
“A retenção, a conservação e a reprodução de cartão de cidadão alheio, em violação do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 5.º, constitui contraordenação punível com coima de €250 a €750”, lê-se na proposta de lei (AQUI ).
E quando se fala em “consentimento do titular” não significa ouvir apenas a pergunta “podemos fotocopiar?”. “Consentir” implica que seja uma decisão livre, informada, sem constrangimentos ou coação.
No caso do setor bancário, o Banco de Portugal, contactado pelo Expresso, diz que ao pedir as fotocópias estão a ser cumpridos dois deveres: o de identificação do cliente e o de conservação dos elementos com base nos quais se procedeu a essa identificação.
No caso do primeiro, está previsto na lei 25/2008, que diz respeito à prevenção e combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e ao financiamento do terrorismo. A “ identificação deve ser efetuada, no caso de pessoas singulares, mediante a apresentação de um documento válido com fotografia, do qual conte nome completo, a data de nascimento e a nacionalidade”.
A questão da fotocópia está referida no aviso 5/2013 emitido pelo próprio Banco de Portugal: “As instituições financeiras devem conservar as cópias ou dados eletrónicos extraídos de todos os documentos que lhes sejam apresentados pelos seus clientes ou por quaisquer outras pessoas, no âmbito do cumprimento dos deveres de identificação e diligência previstos na lei e no presente Aviso”.
Para o provedor, este aviso que é evocado pela banca para justificar as fotocópias não pode sobrepor a lei. “Avisos do Banco de Portugal, por muito importantes que sejam, são avisos do Banco de Portugal. Lei é lei Temos uma lei que é de aplicação universal. O Banco de Portugal pode tentar tornar as coisas eficientes, até porque isso é da sua competência. Como provedor, estou fundamentalmente na defesa dos direitos dos cidadãos, que não podem ver cortados os direitos a negociar ou o que quer que seja devido a essa limitação”, insiste José de Faria Costa.
Os bancos ficam no meio: por um lado têm uma lei, por outro tem um aviso contraditório da entidade que os regula. Ao Expresso, a Caixa Geral de Depósitos assegurou que a lei está a ser cumprida e que existe um procedimento definido para quando o cliente recusa que o CC seja fotocopiado.
O documento apresentado ao cliente pela CGD quando há recusa de fotocopiar o CC
Imagem cedida pela CGD - Expresso
“Para efeitos de recolha de evidência da recusa do cliente é apresentada ao cliente uma declaração especificamente elaborada para esse fim, que deve ser por ele assinada e datada para que a CGD fique com um documento que possa ser presente ao supervisor”, assegura fonte oficial do banco público. Caso seja necessário, esse documento comprova que o funcionário “tomou as medidas de diligência necessárias para recolha e documentação dos seus dados identificativos” e só não recolheu a fotocópia do “documento identificativo de suporte” por recusa do cliente.
NÚMERO DE QUEIXAS ESTÁ A CRESCER. AS PESSOAS ESTÃO MAIS ALERTA
O que fazer se for mesmo exigido a fotocópia do CC (e sabemos que muitas vezes cede-se para ver o problema resolvido o mais rapidamente possível)? “Não querendo ser demasiado cáustico, qualquer pessoa de bom senso dirá que a primeira coisa que deve fazer é chamar uma autoridade para verificar que a lei não está a ser cumprida”, defende o provedor.
A apresentação da proposta de alteração à lei trouxe de volta o debate e deixou as pessoas mais alerta. Além das queixas apresentadas junto do provedor de Justiça, também a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) revela que já recebeu denúncias.
“Temos algumas queixas. Como ainda não é um número expressivo, não é possível contabilizá-las ao certo. Mas este é um tipo de queixas que tem estado a surgir cada vez mais”, informa a ANACOM.
No ano passado, a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) fez da sua principal preocupação a questão da “usurpação de identidade”. “Já teve o mérito de as pessoas estarem muito mais alerta e de recusarem, o que antes não acontecia. Neste momento temos um levantamento considerável de várias entidades, públicas e privadas, que estão a solicitar a fotocópia do CC sem dar uma alternativa”, defende Clara Guerra, porta-voz da CNPD.
Da parte da provedoria de Justiça não está prevista qualquer ação, até porque a lei não pode fazer mais: “É completamente transparente, linear e imediato aquilo que está na lei e é preciso cumprir”.
As queixas recebidas pelo provedor ao longo de 2016 sobre o cartão de cidadão estão a ser objeto de tratamento no relatório anual, que será entregue na Assembleia da República até ao final de abril.
NECESSIDADE OU HÁBITO?
A Comissão Nacional de Proteção de Dados está a preparar para breve uma deliberação sobre a matéria e, consequentemente, a fiscalização e sancionamento. “A lei, na maioria das vezes, refere apenas a verificação da identidade. Agora faz-se porque é um hábito enraizado. Não há uma justificação lógica”, diz ao Expresso a porta-voz da CNPD. “Muito brevemente iremos emanar diretrizes muito concretas e esclarecedoras do que se pode ou não fazer. Vamos ver todas as entidades referidas nas queixas e vamos dar ordem para parar de imediato os procedimentos e depois qualquer reincidência é sancionado”, acrescenta.
Uma fotocópia, explica Clara Guerra, pode ser aldrabada ou modificada (“quase pode ser feito um trabalho de patchwork”). “O que faz sentido, tendo cartões com capacidade de autenticação digital, é que essa funcionalidade seja usada. Não se compreende porque os bancos não têm leitor de cartões. A questão é que a fotocópia não serve para nada nem se quer é um meio idóneo”, diz.
Para o provedor de Justiça, a identificação presencial é a forma mais fácil de resolver o problema. Basta que a pessoa ao balcão olhe para a fotografia do CC e para a pessoa que tem à frente e confirme que quem ali está corresponde à imagem do cartão.
“Trata-se de uma questão cultural. A comunidade está habituada à ideia de que é o cidadão que se deve identificar. Mas essa não é propriamente uma ideia de Estado liberal. Nos Estados Unidos e no Reino Unido não existe cartão de cidadão. Verdadeiramente, é o Estado que me deve identificar e não sou eu que me devo identificar. Nestes países, o cidadão mostra apenas um documento qualquer que tenha fotografia e está identificado”, lembra José de Faria Costa.
“Hoje em dia é no campo da aviação aérea que há maiores problemas e cuidados de segurança. Alguma vez se pede para fotocopiar o CC ao embarcar? Quando se vai viajar, a única coisa pedida é para mostrar o CC. Olham e está feito”, exemplifica o provedor.
A cada vez mais frequente recusa dos cidadãos em deixar fotocopiar faz com surjam alternativas, incluindo a sugestão de reprodução de outro “documento idóneo”. Legalmente não há nada que o proíba, no entanto, defende a CNPD, “continua a ser excessivo fazer fotocópia de outro documento”.
Expresso | 22-04-2017
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