Rita Garcia Pereira - A Segurança Social transformou-se num pântano, onde apenas os utilizadores por sistema, em muitos casos justamente aqueles que abusam dele, conseguem navegar.
Logo no início da licenciatura, os estudantes de direito são compelidos a decorar uma velha máxima que, muitas vezes, será contrariada ao longo da sua vida: o Estado é, alegadamente, uma pessoa de bem. Todo o nosso edifício jurídico é construído sobre este aforismo, sendo que, a espaços, se fala nos abusos do sistema mas raramente se toca nos casos em que o sistema abusa de nós.
Na verdade, o Estado, em especial na sua vertente mais essencial, a do estado-providência, não se porta, por via de regra, enquanto tal e não cumpre os ditames mais básicos da boa fé. A falta de fiscalização quanto às situações de fraude é compensada pelo nivelamento por baixo de todos os utentes, em especial justamente em relação aos que, por estarem mais fragilizados, careciam do apoio que não têm. Desde cartas propositadamente indecifráveis e enviadas em correio simples, com datas muito anteriores às do seu efectivo envio, dirigidas a destinatários que acabam por ver indeferidas as suas pretensões por não perceberem o que lhes é solicitado, a Juntas Médicas onde os médicos que as compõem não têm a especialidade exigida para aferir do grau de incapacidade, passando por prestações de desemprego com intenção de indeferimento ilícitas (sob a alegação de que não é involuntário), a Segurança Social transformou-se num pântano, onde apenas os utilizadores por sistema, em muitos casos justamente aqueles que abusam dele, conseguem navegar.
Mais do que aferir da conformidade da pretensão e do efectivo direito de quem se lhe dirige, do que se trata ali é de criar os entorses necessários a que a pretensão, seja ela qual for, caia por si. Dito de outra forma, a Segurança Social esqueceu-se que existe para o que agora chama de utentes e os burocratas, de mangas de alpaca, que a tomaram de assalto fazem por ignorar que são pagos, também com os nossos impostos, para que confiram a protecção possível quando ela é admissível.
Kafka um dia escreveu que “desde que alberguemos uma única vez o mal, este não volta a dar-se ao trabalho de pedir que lhe concedamos a nossa confiança”. O mal paira, muitas vezes, na Segurança Social. Compete-nos a todos não lhe franquear a porta.
Rita Garcia Pereira, Advogada | Jornal Económico | 06-10-2017
Comentários (1)
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Por ex. a questão do IEFP que envia milhares de cartas simples ( sem prova ) e automaticamente anula inscrições ( assim se baixam os números ). O PJ já se pronunciou várias vezes e continua tudo na mesma.
A SS tem técnicos e técnicas que não percebem patavina de direito a decidir oralmente - conforme as luas, violando em casos específicos tudo que é principio e lei - deixando os mais desprotegidos completamente à deriva.
E tanto faz. Todos estão bem cientes que não se passa nada.
Quem lida com estas bagatelas sabe bem que Portugal é um País de 3º mundo. E já para nem falar da incompetência grosseira da maior parte dos funcionários públicos.
Como colocarem leigos a decidirem matérias relativamente complexas de direito....
A cunha dá nisto.
Médicos de clínica geral que são chamados a se pronunciar sob matérias para as quais não têm qualificações.
Funcionários e procuradores - preocupados apenas com o horário e ordenado, ignorando as pretensões legitimas dos cidadãos.
Policias incompetentes. Superiores incompetentes.
É melhor deixar de tentar imitar os Países desenvolvidos e acabar com os direitos e as leis. É apenas uma brincadeira de mau gosto.