Nuno Garoupa - O Tribunal Constitucional desapareceu de cena. E percebe-se porquê. (...) Os 60 acórdãos do período 2002-2016 mostram que o Tribunal Constitucional está partidarizado. As linhas de partidarização são claras: a esquerda é menos tolerante do que a direita no que toca a validar constitucionalmente a legislação.
O Tribunal Constitucional desapareceu de cena. E percebe-se porquê. A oposição deixou de usar os pedidos de fiscalização como arma de arremesso político. É um direito que assiste ao PSD e ao CDS não usarem o Tribunal Constitucional na sua estratégia de oposição. Apesar de a vice-presidente do PSD, e agora candidata a presidente da Câmara Municipal de Lisboa, ter sugerido sanções civis aos juízes desobedientes há uns anos. O atual líder da oposição, e então primeiro-ministro, afirmou mesmo ser preciso alterar o sistema de escolha dos juízes constitucionais para melhorar a qualidade. Claro que até hoje o PSD não apresentou proposta nenhuma sobre o Tribunal Constitucional seja em que sentido for. Como bem sabemos, o reformismo passista nem ao papel chega e acaba logo na primeira curva mediática. Já a maioria de esquerda, agora governamental, deixou de precisar do Tribunal Constitucional. Estamos, portanto, numa legislatura sossegada para os juízes do Palácio Ratton.
Os períodos de sossego são bons para alguma reflexão mais cuidadosa e longe dos interesses partidários que dominaram nos últimos anos. Num recente trabalho académico com o Pedro Magalhães e a Susana Coroado, disponível na rede SSRN (Social Science Research Network) e a publicar no Journal of Law and Courts ainda este ano, investigámos a fiscalização preventiva e sucessiva nos últimos 15 anos. Usámos os 60 acórdãos do período 2002-2016 (num total de 1997 votos individuais) para responder estatisticamente a duas perguntas. Primeiro, no período da austeridade (2010-2016), o alinhamento político dos juízes constitucionais é assim tão diferente quando fiscalizam a constitucionalidade da legislação austeritária quando comparado com a restante legislação? Segundo, comparando os períodos com austeridade (2010--2016) e sem austeridade (2002-2009), há diferenças significativas no alinhamento partidário dos juízes constitucionais? A resposta a ambas perguntas é negativa. Os resultados estatísticos mostram que o comportamento dos juízes constitucionais, em matéria de alinhamento político ou partidário, não foi distinto quando fiscalizaram a legislação austeritária.
Os 60 acórdãos do período 2002--2016 mostram que o Tribunal Constitucional está partidarizado. As linhas de partidarização são claras: a esquerda é menos tolerante do que a direita no que toca a validar constitucionalmente a legislação. Ao mesmo tempo, o grau de tolerância da esquerda depende de quem está no governo (a esquerda é mais tolerante com legislação do PS), enquanto o grau de tolerância da direita não depende de quem está no governo (a direita é igualmente tolerante com legislação do PS e a legislação do PSD-CDS). São resultados amplamente conhecidos há muitos anos, confirmando que o padrão de partidarização do Tribunal Constitucional existe desde os anos 80 e não foi alterado de forma muito significativa desde então. A imposição do mandato único em 1997 (defendida então pelo líder do PSD Marcelo Rebelo de Sousa como uma garantia adicional de independência) não teve qualquer efeito prático. O programa de austeridade e o ataque da direita à instituição no período 2012-2015 também não.
Estavam, pois, profundamente errados aqueles que, durante meses, entre 2012 e 2015, clamaram que o comportamento do Tribunal Constitucional era novo, diferente e particularmente interventivo. Mesmo a taxa de invalidação de legislação não é particularmente saliente no período em causa. O estudo estatístico demonstra que não houve qualquer "crise conjuntural" do Tribunal Constitucional.
Podemos, evidentemente, achar que há uma partidarização excessiva do Tribunal Constitucional. Esse é o meu entendimento. Por comparações internacionais. Pelo papel político que esta instituição desempenha no sistema de freios e contrafreios portugueses. Mas essa é uma "crise estrutural", isto é, existe desde 1983 e completamente independente do período de intervenção do FMI e da União Europeia. Também é óbvio que a "crise estrutural" pouco preocupa a direita, a quem, para além do mandato único (sem consequências relevantes), não se conhece nenhuma proposta de reforma do Tribunal Constitucional nos últimos vinte anos. Mas sejamos sinceros: isso não surpreende. Porque o grau de partidarização do Tribunal Constitucional resulta do comportamento dos partidos (principalmente PS e PSD), que tratam aquela instituição como apenas mais um depósito de boys (como em tudo, de vez em quando, por mera coincidência, até escolhem gente capaz). Sendo assim, não é em nada distinto das restantes instituições (reguladores, empresas e fundações públicas, etc.). Esperar que o Tribunal Constitucional possa ter uma dinâmica partidária diferente, quando os partidos portugueses são o que são, é completamente irrealista.
Nuno Garoupa | Diário de Notícias | 04-04-2017
Comentários (3)
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Sugere que a "culpa" é do TC, que está partidarizado, mas acaba por concluir que é da direita, por ser preguiçosa nos pedidos de fiscalização.
Em lugar de analisar o número de acórdãos, analise o número de pedidos de fiscalização. É claro que, se o número de pedidos tiver descido para 1/4, o número de acórdãos "desfavoráveis" não pode subir para o dobro...