João Paulo Raposo: Disse esta semana um anterior Secretário de Estado da Justiça, João Tiago Silveira, que o que falta à justiça não são meios. É gestão. Será?
Falava sobretudo a propósito da justiça administrativa mas acabou por estender o raciocínio a todas as jurisdições. Podemos partir do princípio, portanto, que falava genericamente.
Este tipo de reflexão normalmente assenta numas estatísticas, aliás pouco trabalhadas, sobre a despesa per capita da justiça. Depois compara com estatísticas supostamente equivalentes de outros países que, por qualquer razão, talvez metafísica, têm sempre que ser considerados melhores, tipo Alemanha ou Holanda, e conclui como La Palisse: - Falta gestão em Portugal.
Vamos tentar sair do lugar-comum e pensar onde estamos, e o que falta.
A primeira coisa a dizer sobre "gestão" é que, para muitas cabeças pensantes, essa palavra é apenas uma forma sofisticada de dizer "controlo dos juízes". "Gerir", nesse contexto, será uma espécie elaborada de um capataz impor a um dependente que trabalhe. A "gestão" é o chicote. Não sabemos se essa é a ideia de Tiago Silveira mas está certamente na cabeça de muito boa gente. Um ponto de ordem prévio: Na justiça, gerir não é nada disso. O que poderá ser então?
A primeira coisa a considerar é que o primeiro gestor, o gestor mais básico do sistema, é o juiz. O juiz é o gestor dos processos que lhe forem aleatoriamente atribuídos. E por essa gestão é ele, e só ele, o responsável. São muito perigosas ideias de confinar a independência dos juízes apenas à liberdade de decisão. O juiz só é independente se tiver a capacidade de gerir todos e cada um dos processos que lhe estejam atribuídos, segundo critérios que são seus e só seus. A gestão processual tem que ser, portanto, dos juízes.
Paralela a esta gestão processual existe uma outra esfera de gestão, que é a da organização e dos recursos. Nesta esfera deu-se recentemente, ao nível das primeiras instâncias judiciais, uma profunda alteração com a introdução do modelo de um juiz-presidente. Esta figura veio alterar fortemente o quadro de funcionamento, e relacionamento, no seio dos tribunais. Há muitas áreas de indefinição e muita adaptação ainda a fazer. Mas importa afirmar, claramente, que existe atualmente alguém responsável pela gestão do tribunal, enquanto entidade administrativa.
A questão é que o cruzamento entre o que seja gestão processual, dos juízes, e gestão do tribunal, do presidente, é algo frequentes vezes pouco definido. E a sua definição nunca pode pôr em causa o valor essencial que é a independência.
Pensemos num exemplo singelo: O agendamento de julgamentos. Na tradição portuguesa esta é uma tarefa do próprio juiz. Em muitos sítios é uma coisa que nem passa pelo juiz, que não na definição de critérios. Cá é o próprio a fazê-lo. É claro que num tribunal com um único juiz, este agenda de acordo com critérios puramente individuais. Mas se estivermos a falar de um tribunal com 40 juízes e meia dúzia de salas de audiência a questão do agendamento é de gestão do espaço do tribunal. Pode e deve ser consensualizada com os juízes mas é uma questão de organização: - "Porque modo e segundo que critérios são distribuídos os espaços disponíveis para julgamento". Isto não é uma questão de independência. Pelo contrário, deve ser uma libertação do juiz de tarefas burocráticas por forma a aumentar-lhe a disponibilidade para se concentrar no essencial da sua função. E é também verdade que há muitos juízes que ainda não perceberam isto.
Saindo deste patamar básico, em que muito há ainda a caminhar, passamos para um segundo nível de gestão que encerra ainda mais dificuldades. O nível da determinação dos padrões de trabalho. Da fixação de critérios de exigibilidade e, eventualmente, da responsabilidade pelo seu incumprimento. Aqui os perigos para a independência são ainda maiores.
Ao contrário do que diz Tiago Silveira, não falta atualmente gestão a este nível. Se há atividade que é escrutinada e monitorizada ao limite é a dos juízes, por obra e graça desse entes quase míticos chamado sistemas informáticos. Até à monitorização, com algumas reservas, nada de mal na essência. Os sistemas de informação são, cada vez mais, a coluna central de todas as organizações e, também na justiça, o são e continuarão a ser. O problema é saber o que se faz com os dados recolhidos e o que se exige a cada um que faça. Também aí, para muitos, "gerir" é ter um capataz, neste caso eletrónico. Isso é profundamente errado e aí faz falta, de facto, muita "gestão" mas, principalmente, muito cuidado.
Talvez o mais difícil na justiça seja, precisamente, definir o que é o trabalho exigível de cada um. Numa fábrica de conservas ou de enchidos é fácil dizer que um trabalhador tem que encher mil latas de sardinhas ou quinhentas de salchichas. Mas a justiça não é, mesmo que se pense o contrário, uma fábrica de enchidos. Monitorizar a quantidade, certo. E como se estabelecem padrões? E como se introduz e considera o fator complexidade? Aqui muito pouco se tem conseguido fazer com um mínimo de objetividade e rigor.
Tem que se admitir que existam indicadores de gestão. Há critérios de normalidade e capacidade média que têm que ser estabelecidos. Isto não pode, nunca, é ser um mero instrumento contabilístico e acéfalo, como muitas vezes tem sido. E é essencial considerar a informação que os próprios juízes possam aduzir. Mas, mais que tudo, esta monitorização não pode ser um meio para condicionar a independência dos juízes. Também aqui há muita "gestão" em falta.
E daqui para cima? Ao nível da grande arquitetura do sistema? Aí a questão é outra. Muito mais que de gestão, é de meios. E de poder. A justiça é o único poder, constitucionalmente independente, que não gere os seus meios. A gestão financeira e patrimonial está no governo. A gestão do sistema informático está no governo. A gestão de todos os recursos humanos não magistrados está no governo. A própria decisão de recrutamento de magistrados está no governo. Então a pergunta, caro João Tiago, é quem controla, de facto, os meios da justiça? E quem, de facto, tem o poder de gerir?
O que falta aí não é gestão. É medo de perda de poder.
João Paulo Raposo | Sábado Opinião | 03-07-2017
Comentários (0)
Exibir/Esconder comentários