Vamos imaginar que estamos num país evoluído

João Paulo Raposo - A questão central é a mesma de todos os tempos - como conseguimos ter juízes independentes neste contexto? Juízes funcionalmente independentes. Estruturalmente independentes. Culturalmente independentes. Independentes de outros poderes, públicos ou privados. Independentes de influências externas e internas ao sistema. Independentes. Ponto.

Vamos imaginar, nem que seja por um instantinho só, que estamos num país cultural, social e democraticamente evoluído. Cá vamos nós: salto espácio-temporal e …

Estamos na Europa. Já entrámos no século XXI há uns aninhos. Estamos a ter uma discussão muito importante para o sistema de justiça. Vamos imaginar, nem que seja por um instantinho só, que estamos num país cultural, social e democraticamente evoluído. Cá vamos nós: salto espácio-temporal e… já está… estamos numa dimensão alternativa.

Nesta realidade alternativa o que discute são questões substantivas. Soluções estruturais. Evoluções que possam ser sustentadas a curto, a médio e a longo prazo. O que se faz é, na verdade, discutir a sério. Sem complexos de qualquer tipo. Pensando a justiça. E pensando o estatuto dos juízes como uma peça essencial desse sistema.

Nesta realidade estamos, portanto, a pensar em ajustar o Estatuto dos juízes à realidade actual. A preocupação básica é garantir a independência da justiça. Sabemos que as coisas não podem ficar na mesma. A realidade social e económica mudou. A complexidade é muito maior. A realidade judiciária, por consequência, também mudou. A função do juiz terá que ter mudado também. Há outra organização. Há mais gestão. Há mais informática. Há mais sedimentação de jurisprudência. Há muito mais fontes de direito. Se calhar haverá brevemente inteligência artificial na justiça. O apoio administrativo feito por pessoas sem formação diferenciada será substituído por computadores. Exige-se apoio especializado. Tudo em mudança. E rápida. O que queremos?

A questão central é a mesma de todos os tempos - como conseguimos ter juízes independentes neste contexto? Juízes funcionalmente independentes. Estruturalmente independentes. Culturalmente independentes. Independentes de outros poderes, públicos ou privados. Independentes de influências externas e internas ao sistema. Independentes. Ponto.

Para isso é preciso pensar num Estatuto reforçado. Não com as regras de há cem anos, muitas delas que perduraram, em que o juiz era quase um sacerdote, se não um asceta, que trabalhava geralmente sozinho, num tribunal seu, vivendo numa casa cedida pelo Estado. Mas também certamente que não com uma espécie de "corporate code", em que o juiz é um mero recurso humano, ou um ativo, de uma empresa judicial que se move só pela produtividade e pela eficiência.

Neste mundo alternativo, quando os juízes falam do seu estatuto social, as pessoas, desde os decisores ao cidadão comum, passando pelos fazedores de opinião, percebem que o que se pretende é ter um sistema de qualidade. Que atraia os muito bons. Técnica e humanamente. Que os faça melhores. E que os mantenha.

Neste mundo, percebe-se facilmente o que são pretensões legítimas e o que não são. E percebe-se que a qualidade e a independência, absoluta e intransigente, têm que ser suportadas pela comunidade. E são-no com toda a naturalidade e não como quem dá uma esmola, só para que o pedinte saia da frente e até pensando que não a merece.

Claro que se discute sustentabilidade económica do sistema. Mas também aqui se discute a sério. Pensando no número global de juízes. Na programação das necessidades de entrada e saída da carreira. Nas funções de assessoria. E possivelmente concluir-se-á que o ideal é ter menos juízes, ou muito menos, e ter mais profissionais de apoio. E que, neste contexto, fazendo contas a sério, o dispêndio público até é inferior.

Neste mundo, quando se fala em estatuto económico dos juízes fala-se para vinte, trinta ou quarenta anos. E não se confunde com pedidos de aumento, como os que um funcionário faz a um patrão. E não se etiquetam os profissionais que, descomplexadamente, falam nestas matérias como uma espécie de vampiros sem consciência.

3…2…1…Voltámos à nossa realidade. Aqui é tudo pensado sem tempo. Em cima do joelho. Seis meses já é longo prazo. Qualquer conversa é "um pedido de aumento". Falar em independência é "conversa da treta". Pelo menos até ao dia em que toque na pele de alguém. Mesmo assim, não calamos.

Mesmo neste presente falaremos de independência. E voltaremos a falar. E falaremos ainda mais uma vez. E não deixaremos de falar do estatuto social dos juízes. Recatadamente, mas sem complexos. A independência também passa aí.

Vamos ver se nos ouvem…

João Paulo Raposo| Sol Opinião | 12-06-2017