In Verbis


icon-doc
REVISTA DE 2017

Greve dos juízes. Vamos lá falar de razões

  • PDF

João Paulo Raposo - Está definida a greve dos juízes. Dia 3 de Outubro para os tribunais de 1ª Instância e dia 4 de Outubro para os Tribunais Superiores. Estava pré-anunciada e agora está definida. Está na altura de olhar o que aqui nos trouxe e as suas razões.

Sabíamos que estávamos a negociar com o poder político. Nem por um segundo considerámos que tínhamos como contraparte coisa diversa. Sabíamos que iria acabar por se dizer que era só uma questão de dinheiro. Sabíamos até que se ia tentar conduzir o processo negocial para nos isolar nesse reduto. Não foi, aliás, uma brilhante estratégia política porque a topámos à légua. Também o governo PSD, com pequenas variantes, seguiu o mesmo caminho: - Lançar para cima dos juízes o ónus público da suposta "reivindicação salarial". Com isso sempre esperam envergonhar e imobilizar os juízes. E muitas vezes conseguiram-no no passado.

Não é, obviamente, só uma questão de estatuto económico e social. Mas também é. Já lá vamos. Antes disso uma nota sobre este suposto "isolamento".

Foi de plena consciência que aceitámos negociar com o Ministério todos os pontos, e eram muitos, em que as soluções inicialmente propostas eram más, ou muito más. Seria fácil, mas irresponsável, não negociar esses pontos sem ter uma garantia completa quanto à parte económica. Havendo ruptura negocial, o conjunto de argumentos para convocar uma greve seria muitíssimo mais amplo. Isso seria publicamente confortável para uma associação sindical. Mas não seria defender devidamente os juízes e a justiça.

O risco de termos um estatuto com gravíssimos problemas, que fosse aprovado sem ser negociado e se mantivesse em vigor por muitos anos era demasiado grande. O risco de haver normas que pusessem em causa de forma profunda a independência dos juízes, ou que validassem graves entorses que vinham das normas processuais ou da organização judiciária, era demasiado grave para seguirmos uma lógica especulativa.

Seguimos, por isso, a linha que as pessoas de bem seguem. Que é dizer, em cada momento e com verdade, o que é para nós aceitável e inaceitável. Traçámos linhas vermelhas. Apresentámo-las. Sabíamos que as soluções de compromisso nunca são vitórias absolutas mas têm que salvaguardar o essencial. Negociámos. Atingimos soluções boas em muitas áreas. Não atingimos uma solução final aceitável na área económico-social. Mesmo que fosse só essa a questão sobrante teríamos que ser consequentes com o que sempre dissemos. E rejeitar o acordo final. Foi o que fizemos.

A parte do estatuto social, sempre o afirmámos sem complexos, é tão importante como todas as outras. Teria que haver um momento na história em que os juízes pusessem um ponto final na lógica de isolamento que o poder político lhes impõe sobre esse assunto. Esse momento chegou. Basta de ter vergonha de afirmar que os juízes são pessoas como as outras mas que têm uma função própria e particular. Sabemos que isso não é popular. Se há vantagem em andarmos muitos anos a ser atacados por sucessivas ondas populistas quanto aos supostos "privilégios" é que chegámos a um momento em que já não temos muito a perder. Há que dizer a verdade. Toda a verdade. Ei-la.

As propostas dos juízes na negociação da parte económica ficaram aquém das propostas que o grupo de trabalho formado pela própria Ministra apresentou. Não houve exigência para que entrassem todas em vigor em 2018. Foram propostas contidas e razoáveis para resolver problemas profundos e antigos. Com impacto orçamental absolutamente mínimo. Foram recusadas sem qualquer razão aceitável.

Os juízes sabem que esta não é uma carreira de privilégios ou, muito menos, de riqueza. Mas tem que ser uma carreira segura e economicamente tranquila. Isso é essencial ao bom desempenho da função. Actualmente não é sequer uma carreira. E isso é inaceitável. O Estatuto dos Juízes discute-se para vigorar por décadas. Está degradado e tem que ser revisto.

O rendimento líquido dos juízes sofreu desde 2010 uma desvalorização próxima de 30%. Dirão que isso aconteceu a muitos portugueses, em muitas áreas, e que se iniciou um processo de reversão. Mas a função dos juízes é particular. Só a muito custo a Ministra acabou por aceder na reversão de um corte específico de 20% numa parte essencial do rendimento dos magistrados para logo, como seria de esperar a qualquer político, vir afirmar que já fez uma cedência remuneratória muito relevante…

A carreira judicial, única soberana em absoluta e completa exclusividade por toda a vida, tem que dotar de estabilidade económica e moral quem a exerça. Só assim é possível verdadeira independência e total compromisso. Não porque exista perigo de comportamentos desviantes. Os juízes, ganhando muito ou pouco, são profissionais íntegros e a honestidade não tem preço.

O problema da instabilidade económica não é a necessidade de alterações de vida que muitos juízes tiveram que fazer. Nem é, sequer, o facto de ter havido muitos juízes em verdadeiras situações de aperto económico. Isso são coisas que podem acontecer a qualquer pessoa, em qualquer actividade, num contexto de crise.

O verdadeiro problema é que, insidiosamente, as condições morais necessárias à verdadeira independência na função se vão corroendo. E, no limite, os demónios da conformação ou do populismo podem fazer o seu caminho no inconsciente do juiz. Um estatuto económico equilibrado deve garantir que isso não sucede. Isso não deve ser visto como um privilégio de classe mas uma condição de independência e imparcialidade. A sociedade impõe a quem queira ser juiz exigências excepcionais e tem que garantir condições adequadas para as satisfazer. Caso contrário a função só pode ser exercida por super-heróis.

O Estatuto deve garantir que qualquer pessoa normal suporta a responsabilidade especial que é ser juiz. É isso, aliás, que se afirma expressamente quando se impõe irredutibilidade dos vencimentos dos governantes dos bancos centrais ou das entidades reguladoras. O governo não percebeu estas consequências únicas da desvalorização da carreira judicial. Isto, só por si, é um forte motivo para uma greve.

Acresce que deixou de haver uma verdadeira carreira judicial. Isso é essencial para que alguns dos melhores e mais motivados a ela queiram aceder. E só assim é possível que a dignidade correspondente à hierarquia judicial seja assegurada. Actualmente, a esmagadora maioria dos juízes de 1ª instância ganha basicamente o mesmo, em certos casos mais, que um juiz dos Supremos Tribunais, incluindo Constitucional e Contas. Isso não existe em lado nenhum. É errado e desprestigiante. Também isso o governo se recusou terminantemente a resolver. Com isso desconsiderou os juízes dos tribunais superiores e os membros do grupo de trabalho que a própria Ministra nomeou e que integrava uma larga maioria de Juízes Conselheiros.

É por esta desconsideração específica dos tribunais superiores e dos seus juízes que a greve dedicará um dia só a estes tribunais.

Não querer discutir estes assuntos essenciais, nem que fosse para o médio e longo prazo, com argumentos quase risíveis de "não querer criar compromissos para o futuro", como se não fosse isso que um governante faz todos os dias, quando abre qualquer concurso, quando contrata uma pessoa ou um serviço, é recusar-se a negociar todo o Estatuto. Dizer-se que a justiça custa ao país milhares de milhões de euros e depois não dar aos juízes condições sociais adequadas ao desempenho da função que custariam meia dúzia de tostões é pura falta de visão.

Não houve vontade política. Nunca há vontade quando se trata de juízes. Por isso a greve não é só dinheiro. É uma manifestação de rejeição dos juízes a uma degradação profunda da sua função, a todos os níveis, e à ausência de respeito do poder político pela mesma que vem, pelo menos, desde 2010.

O final do processo de revisão do Estatuto, nesse sentido, só marca o fim da ilusão de que algum governo possa olhar para o estatuto económico dos juízes com consciência da especificidade que ele merece e com vontade política de o respeitar.

Não é só dinheiro. Mas mesmo que fosse há muito que haveria razões mais que suficientes para uma greve.

João Paulo Raposo | Opinião Sábado | 12-09-2017

Comentários (0)


Exibir/Esconder comentários

Escreva o seu comentário

reduzir | aumentar

busy

InVerbis 2018

Os conteúdos de 2018 desta revista digital passaram a ser publicados em novo diretório.

Revista InVerbis 2018

Últimos conteúdos

Um investigador da Universidade do Minho criou uma técnica para ajudar as testemunhas a recordarem com maior precisão o ...

Foi o pacto possível. Advogados inviabilizaram medidas mais musculadas no combate à criminalidade económico-financeira. ...

A empresa ANA - Aeroportos de Portugal, que gere os aeroportos nacionais, cobra uma taxa de 11,28 euros aos advogados qu...

Com o termo do ano, cessaram as publicações de conteúdos nesta Revista Digital de 2017.Para aceder aos conteúdos publi...

Últimos comentários

Opinião Artigos de Opinião Greve dos juízes. Vamos lá falar de razões

© InVerbis | Revista Digital | 2017.

Arquivos

Sítios do Portal Verbo Jurídico