João Paulo Raposo - Diz-se que se está a iniciar um novo ano judicial "sob o espectro da greve de juízes". A afirmação está errada, não só porque não se está a iniciar ano judicial nenhum como, principalmente, porque os espectros que por aí andam não são da greve.
A primeira parte da incorreção é um pequeno facto acessório que decorre de ter sido alterada a lei por forma a que o ano judicial coincida com o civil. Isto tem diversas implicações, sobretudo de estatística e correspondência com outras realidades do espaço europeu. Assim, na verdade, o que aconteceu a 1 de setembro foi apenas o fim do período de férias judiciais e nada mais.
Mas há, de facto, uma greve anunciada pelos juízes para início de outubro. Se é um espectro, pelo menos tem uma vantagem face a outros espectros: - Vai materializar-se brevemente. Outros espectros levaram a que a greve tivesse que ser realizada. Esses são espectros muito antigos. Alguns já cá andam há muito e nunca mais se materializam em nada…
O primeiro desses espectros é o da falta de respeito do poder político para com o judicial. Na superfície, na forma e na aparência das coisas esse respeito existe e é manifestado. Na profundeza das convicções e na substância dos comportamentos não. A negociação do Estatuto dos Juízes é, nesse sentido, apenas um epifenómeno espectral. O azar é que é um epifenómeno com tal força que os juízes não podem deixar de o olhar como um símbolo e um ponto de não retorno. Neste momento, quem quer ser respeitado só pode fazer uma coisa que é dizer "basta".
Não é verdade que os juízes tenham exigido aumentos de salários para o imediato como condição de um acordo. Não é verdade que queiram um tratamento diferenciado a nível fiscal ou que quisessem pôr em causa retroactivamente os cortes de vencimentos e a política fiscal desde 2011. O que é verdade, sim, é que os juízes exigiram, e disseram-no sempre à Senhora Ministra, discutir a sua carreira. A discussão do Estatuto deve ser, sempre foi na história, uma discussão completa, que o procure adequar à realidade e às exigências da função.
Poder-se-ia até fechar um acordo com as exactas condições que saíram da discussão na parte do Estatuto social para 2018 caso houvesse um compromisso político, claro e solidamente assumido, de discussão substantiva da carreira. Até poderia ser para entrar faseadamente em vigor a partir de 2020. Ou 2025. Ou o que fosse. Mas que discutissem. Que se pensasse na forma de eliminar definitivamente um subsídio que alude a "residência" mas que todos sabemos, há muito, que é uma compensação pela absoluta exclusividade e redução de direitos sociais, civis e políticos que o estatuto dos juízes acarreta. Que se pensasse nos problemas dos juízes de 1ª Instância e nas disparidades remuneratórias aí existentes. Que se pensasse como é possível que em Portugal a maioria dos juízes com 10 anos de carreira atinja o topo e depois aí permaneça toda a vida, mesmo que suba a uma Relação ou a um Supremo.
Só exigimos discutir isto, como parte integrante e peça essencial do Estatuto. Claro que a parte económica e social é essencial em qualquer quadro. E não é porque os juízes sejam diferentes. É precisamente pelo contrário. É porque são iguais a todos e apenas as pessoas que, num dado momento histórico, estão a realizar, em nome da colectividade, uma tarefa especialmente difícil, exigente e sensível que devem ter um estatuto social suficientemente garantístico e protector. E não o têm no presente.
Não. Não é porque esteja em causa a política geral do governo de revalorização transversal de rendimentos. Ou que possa perturbar o alívio fiscal nos escalões menos favorecidos. Também não é pelo argumento do "dique" que o governo lá vai. Uma espécie de "se abrirmos uma brecha para os juízes somos arrastados pela corrente". Não faz sentido, não só porque o tal dique já foi aberto nalguns casos como, principalmente, porque aceitaríamos discutir qualquer proposta de faseamento das resultantes da negociação. O que não aceitamos é que um poder político possa dizer aos juízes que só discute o que quer e quando quer e, no mais, nos fecha a porta na cara. Isso é desrespeito.
Será bom mais uma vez relembrar que é por via do estatuto pessoal, económico e social dos juízes que as maiores pressões se fazem em todo o lado. Em locais menos "criativos", tipo Turquia e Venezuela, quando os juízes se tornam incómodos vão presos e o problema está resolvido. Noutros lados os ataques são mais sofisticados mas tocam sempre essa componente. Paradigmaticamente, aliás, na Turquia, ao mesmo tempo que foram presos muitas centenas de juízes considerados incómodos foram aumentados os vencimentos de todos os considerados "conformes" e "submissos" …
A questão não é, portanto, saber porque os juízes "querem" fazer greve. É antes saber porque o governo recusou terminantemente discutir a carreira. Aí é que se desenham os verdadeiros espectros desta discussão.
E daí o espectro da greve.
João Paulo Raposo | Opinião Sábado | 04-09-2017
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