João Paulo Raposo - Fazer greve não é renunciar à soberania. É marcar uma linha vermelha. É ser digno, coerente e consequente com essa soberania. É relembrá-la quando é desrespeitada. Oxalá houvesse outra forma de a defender. Oxalá houvesse outro alguém que a defendesse.
17 euros. É esta a diferença de vencimento líquido entre a esmagadora maioria dos juízes de 1ª instância e os Juízes Desembargadores dos Tribunais da Relação e Centrais Administrativos. Isto não é teoria. Foi olhar para dois recibos de vencimento lado a lado. Haveria diferença nas retenções fiscais mas, tudo visto e somado, o simbolismo fica: - 17 euros de diferença.
É disto que estamos a falar quando dizemos que não há actualmente uma carreira. Se acrescentarmos que muitos juízes atingem esse patamar remuneratório na 1ª instância ao fim de 5 ou 6 anos na função e que a maioria dos juízes se aposenta, ou jubila, como Juiz Desembargador, ao fim de 40 anos de carreira, depois de aí chegar ao fim de muitos anos de trabalho, podemos dizer, com certeza, que alguma coisa não está bem.
Acreditamos, mesmo com todos os argumentos tabloides atirados à cabeça, que alguém há-de perceber também que isto não pode estar certo. E há, e haverá cada vez mais, juízes a terminar a carreira na 1ª instância. Esses nem os 17 euros de evolução vão "vivenciar" e podem passar 30 anos a auferir rigorosamente o mesmo. Será racional?
Se dissermos que isto desprestigia, desmotiva e afasta muita gente da carreira, arriscando-nos, a médio prazo, a ter como juízes só juristas de segunda apanha, ainda estamos a dizer pouco.
Se dissermos que há diferenças remuneratórias ao nível da própria 1ª instância que têm pouca justificação, continuamos a afirmar razões de equilíbrio do estatuto social em que assenta muito do que queremos discutir. Mas continua a ser pouco.
Também já dissemos, tantas vezes que até a nós cansa, que podemos discutir todos os impactos financeiros das nossas propostas. Pensar por fases. Pensar a médio e longo prazo. E como todos os portugueses, aplaudimos o crescimento económico do país. Como todos, aplaudimos também que avaliadores internacionais tenham recolocado a dívida portuguesa em nível de investimento. E, como todos, queremos também um país financeiramente estável e economicamente próspero. Aceitamos discutir tudo. Só não aceitamos é que não discutam tudo connosco.
O que não aceitamos, aquilo que é o coração das razões que nos leva à greve, é não sermos tratados como órgão de soberania por outro órgão de soberania. E o governo não nos tratou como tal.
Não se pode dizer, porque não seria verdade, que as reuniões com o governo não produziram resultados em muitas áreas importantes. Mas isso pode e deve acontecer em qualquer negociação, no sector público ou no privado. A questão aqui é que decorreram num quadro em que alguém diz o que pode e quer negociar e diz o que não pode e não quer. A Sr.ª Ministra negociou tudo o que pôde. Mas não pôde negociar tudo. Não é assim que se trata entre órgãos de soberania.
Acreditámos até ao fim, até ao momento de convocar a greve, que o governo se lembraria dessa soberania. Não se lembrou. Depois, quando se falou em greve, rapidamente a recordação voltou. Muitos só se lembram da soberania dos juízes quando estes falam em greve. Nessa altura ninguém se esquece de a lembrar.
Fazer greve não é renunciar à soberania. É marcar uma linha vermelha. É ser digno, coerente e consequente com essa soberania. É relembrá-la quando é desrespeitada. Oxalá houvesse outra forma de a defender. Oxalá houvesse outro alguém que a defendesse.
Esta greve de juízes não é uma inevitabilidade. Ainda pode deixar de se fazer. As greves de juízes, em geral, não são uma inevitabilidade. É possível acabar com elas de vez.
Para esta não se fazer basta que a Assembleia da República, órgão em cuja soberania depositamos a nossa confiança, e a esperança que nos trate como tal, assuma, solidamente, que irá discutir connosco sem reservas. Iremos com propostas e temos abertura para as debater.
Para que as greves acabem por completo é preciso algo mais difícil. Pode conseguir-se mas exige mudar a Constituição. Exige que esta assegure a independência completa dos juízes e defenda a estabilidade da sua carreira. Soberania numa carreira sem estabilidade não é verdadeira soberania. Está em risco a cada momento e sujeita a repetida barganha com os outros poderes, de mão estendida, que mais não seja na discussão dos Orçamentos.
Essas garantias têm dignidade constitucional. Defenderiam a estabilidade de um órgão de soberania na sede própria, onde até já existe uma proibição de exercício, pelos juízes, de qualquer outra actividade remunerada. Se é possível restringir direitos profissionais dos juízes na Constituição também será certamente possível consagrar garantias…
Essas garantias seriam a linha vermelha que hoje é a greve. Até lá, vemo-nos forçados a ir por este caminho. Não nos dão outro.
João Paulo Raposo | Opinião Sábado | 18-09-2017