A justiça tem preço?

João Luz Soares - Parece que a Justiça portuguesa está, pelo menos economicamente, de boa saúde. No entanto, o desafio é apostar em formas sustentadas de investimento desse Orçamento, que é composto, em grande parte, de receitas próprias.

Ainda sobre o Relatório "Dossier Justiça 2017" que apresenta o orçamento do Ministério da Justiça (MJ) para 2017, publicado em Novembro de 2016, e tendo já sido analisadas nesta coluna as especificidades relativas às despesas com o pessoal em 2017, assim como, "lato sensu", com as despesas de funcionamento, será interessante, agora, densificar e aprofundar essa análise, em direcção a um panorama mais abrangente da realidade orçamental do MJ.

Habituados a ouvir a cacofonia mediática da falta de meios e instrumentos na Justiça portuguesa, assim como a afirmação de uma sub-reptícia ligação entre tal quadro e os medíocres patamares de tratamento qualitativo dos processos, temos que questionar se, efetivamente, existe dotação orçamental suficiente e se o cômputo do dinheiro existente é, ou não, eficazmente utilizado.

As grandes opções do Plano Orçamental, escudadas no slogan "Uma Justiça ao serviço da cidadania", passam pelo expresso reconhecimento de que existe a necessidade de aproximar a justiça dos cidadãos, flexibilizando o acesso ao direito, dinamizando a celeridade e a compreensibilidade das decisões, como fatores de paz social, de competitividade da economia e das empresas, adotando uma perspetiva para a modernização, simplificação e racionalização de meios. E estes ambiciosos objetivos assentam numa tríplice atuação concertada tendo em vista i) a melhoria da gestão do sistema judicial, ii) a resolução de situações de congestionamento nos tribunais e a sua prevenção para o futuro, e, como já referido, iii) a aproximação aos cidadãos e qualidade do serviço público de justiça.

O Orçamento total do MJ para o ano de 2017 atinge o montante de 1353,3 MJ, sendo composto por receitas gerais no valor de 615,2 MJ (47,6%), por receitas próprias geradas no MJ no valor de 714,2 MJ (52,2%) e por fundos comunitários no valor de 23,9 MJ (0,2%). Desonerando o orçamento do ano de 2016 dos encargos referentes à Magistratura Judicial (que se cifram no valor de 122,5MJ), que deixam de onerar o Programa Orçamental de Justiça, rapidamente chegamos à conclusão que o orçamento do MJ para 2017 sofre um aumento na ordem dos 82,4MJ, i.e., de 6,5%. Por outro lado, este orçamento consigna 1291,2 MJ para despesas de funcionamento (atividades) e 62,1 MJ para despesas de investimento (projetos). Perante a decomposição analítica do orçamento do MJ para 2017, teremos que sublinhar que a especificidade daquele resulta precisamente do facto de haver uma multiplicidade de fontes de financiamento, garantidas pelo Orçamento de Estado, pelos fundos comunitários e, mais importante, pelas suas receitas próprias, no valor de 714,2 MJ, que correspondem, até, a 52,2% do orçamento global (ver Quadro 1).

E este aumento considerável das receitas próprias, que o próprio Plano qualifica de "previsível", está intimamente relacionado com a melhoria da atividade económica, com o correlato, aumento das receitas provenientes das taxas de justiça, taxas de registo predial, comercial e de veículos, "inter alia". Interessante será verificar, também, que o actual orçamento apostou, descomplexadamente, na maximização da captação dinâmica de fundos comunitários, que passaram de 6,9MJ em 2016 para 23,9MJ em 2017, nomeadamente através dos programas Capitalizar, Simplex+ e Justiça+próxima. Por outro lado, considere-se, neste âmbito, a distribuição dos valores do orçamento pelos grandes âmbitos funcionais que constituem a área de actuação do MJ (ver Quadro 2). Curiosamente, a despesa com maior expressão no orçamento continua a ser a relacionada com o funcionamento dos Tribunais (onde se englobam Tribunais da Relação, os Tribunais Centrais Administrativos, a Magistratura Administrativa e Fiscal, os Tribunais de 1.ª instância que estão contemplados no orçamento da DGAJ, o CEJ e a CAAJ), sendo que, em segundo lugar, se encontra o subsistema de Registos e Notariado, e com a investigação criminal (MP, PGR, PJ e INMLCF) a fechar o último lugar deste pódio. Uma pequena nota para referir que o Apoio Judiciário obtém uma dotação que ascende a 49,2MJ, com um reforço correspondente a 54,6%.

Aqui chegados, e com as expectativas de cobrança de 741, 4MJ ao nível das receitas próprias durante o ano de 2017, depressa se chega à conclusão que a maior parte desse valor advém da rubrica Taxas, Multas e outras penalidades, isto sim, previsível (ver Quadro 3).

Parece que a Justiça portuguesa está, pelo menos economicamente, de boa saúde. No entanto, o desafio é apostar em formas sustentadas de investimento desse Orçamento, que é composto, em grande parte, de receitas próprias. Quem percorre os corredores e halls magnânimos, mas estranhamente vazios, dos Tribunais, mesmo fora da bolha de Lisboa, saberá, certamente, do que falamos. Os Tribunais deslumbram, intimidam, despersonalizam a quem eles recorre, mas tardam a resolver. Os agentes e intervenientes são os átomos do sistema de funcionamento da justiça. E estes não podem conviver em instalações messiânicas, mas com elevado custo, como vimos, sem que os juízes, por exemplo, e enquanto máximo expoente de aplicação do direito, decidem em gabinetes sem condições mínimas.

O equilíbrio é, admitimos, frágil. Mas a economização da justiça, reduzida a um mero coletor de taxas, multas e penalidades, não pode ser tolerada. A justiça não tem preço. Não pode é ser feita, contudo, a qualquer custo.

João Luz Soares, Advogado | Vida Económica | 15-09-2017