Henrique Araújo - Não é fácil, nunca foi fácil, provavelmente nunca será fácil a relação da Justiça com a comunicação social.São incontáveis as conferências e os debates que se organizaram com o objectivo de aproximar posições e de melhorar o modo de comunicar entre a Justiça e os media. Promoveram-se cursos de jornalismo judiciário e avançou-se com a ideia de criação de gabinetes de imprensa nos tribunais, com custos que nunca foram estimados, tal a grandiosidade da empresa.
Não se pode dizer que todo esse esforço tenha sido em vão, mas penso que é consensual a percepção de que os resultados práticos continuam a reflectir alguma insatisfação de parte a parte. Por um lado, a maioria dos agentes da Justiça não se revê na forma como a comunicação social trata os casos mais impactantes; por outro lado, a comunicação social reclama da Justiça mais e melhor informação.
Nas próximas linhas tentaremos ver se é possível ir mais além nesta relação. Remonta ao século XIX a ideia de que a comunicação social é o quarto poder. Nas palavras de Umberto Eco ("Cinco Escritos Morais", página 41), a função deste poder consiste em controlar e criticar os outros três poderes tradicionais: o legislativo, o executivo e o judicial. O exercício desse poder informal faz-se, sobretudo, através da formação da opinião pública e mediante a vigilância sobre a actuação dos agentes dos poderes do Estado.
Como vivemos numa sociedade da informação, caracterizada pela forma extremamente rápida como circula a informação, através de canais diversificados e com cifras maciças de utilizadores, a influência desse poder "de facto" cresce diariamente, num processo contínuo de mobilização da opinião pública para a discussão de temas com potencial para criar estados de alma (indignação, escândalo, vingança, compaixão, etc.).
No seio da comunicação social, a televisão mantém a hegemonia. É ela quem dita os temas da discussão diária, noticiando ao momento, colocando repórteres no local dos acontecimentos, promovendo debates, disponibilizando comentários.
Vem já de há alguns anos a esta parte a apetência da televisão, e da imprensa em geral, pela chamada "justiça dramática", ou seja, por casos de justiça relacionados com matéria de natureza criminal. Logo que há notícia da prática de um crime com mais relevo social e da detenção do respectivo suspeito, colhem-se declarações ao visado, ao advogado e às pessoas que supostamente terão conhecimento dos factos, naquilo que, aos olhos de quem assiste, se apresenta como um julgamento público e sumário. As audiências registam "picos"; os canais da concorrência agitam-se e, para não ficarem atrás, repetem o "julgamento"; os comentários sucedem-se; a emissão televisiva prolonga-se; a paciência esgota-se!
No dia seguinte, todos os espectadores têm uma opinião sobre o assunto, todos se sentem habilitados a "decidir" quem é culpado ou inocente.
Evidentemente que este tipo de informação, embora legítima, por caber no direito à liberdade de narração e de (abreviada) investigação jornalística, converte-se quase sempre num espectáculo para as massas, facilmente atraídas pelo sensacionalismo e pelo jogo de emoções, a quem se induzem percepções superficiais e incompletas sobre os factos, com ausência de rigor conceptual e desprezo pelos direitos de terceiros.
Mas a Justiça não se faz no tempo breve de uma reportagem ou notícia. A Justiça requer tempo, ponderação, e obedece a uma série de regras de natureza processual destinadas a fazer valer, em igualdade de circunstâncias, os interesses e direitos dos contendores.
Além de serem necessariamente diferentes os tempos da Justiça e da comunicação social, também as lógicas e finalidades de actuação são obviamente diversas: os tribunais cumprem o desígnio constitucional de administrar a justiça em nome do povo; a comunicação social tem o direito de informar os cidadãos, mas serve interesses privados, movendo-se num meio concorrencial agressivo, com técnicas cada vez mais sofisticadas de produção e distribuição de notícias, e na procura de níveis de audiências que lhe permitam obter mais receitas de publicidade. A realidade da nossa televisão, pejada de externalidades negativas, é transportável, ainda que em menor grau, para a imprensa escrita.
Evidentemente que é importante e democraticamente saudável que a comunicação social informe os cidadãos do que se passa na Justiça, de modo a que estes possam escrutinar o modo como funciona o sistema judiciário. Afinal de contas, a accountability colectiva é indispensável num Estado de Direito democrático para testar os níveis de eficácia, eficiência, transparência e credibilidade do sistema de justiça.
Todavia, a informação surge muitas vezes truncada, distorcida ou descontextualizada, com ou sem intenção. Muitas vezes ainda, razões de política editorial fazem incidir a atenção do leitor em aspectos do funcionamento da Justiça menos conseguidos, designadamente para passar a imagem de que o sistema é lento e não funciona.
Um exemplo recente foi o que ocorreu por ocasião da cerimónia de abertura do corrente ano judicial.
No seu discurso, o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça tinha feito o balanço do ano transacto sobre o comportamento das instâncias da Justiça, referindo os tempos médios de decisão nos tribunais portugueses. Tendo como fonte as estatísticas oficiais, informou que o tempo de duração média, na primeira instância, em matéria cível (excluídas as execuções) foi de 17 meses, em matéria penal, de 10 meses e meio, e na jurisdição laboral de, aproximadamente, 12 meses. Estes tempos médios de decisão situam-nos nos lugares cimeiros do ranking europeu e deviam ser enaltecidos do mesmo modo que o são outras prestações lusas noutros domínios.
No entanto, no dia seguinte, alguns jornais diários "puxaram" para a primeira página a declaração, estafada e infundamentada, proferida por um dos oradores nessa cerimónia, de que a lentidão da justiça constitui um entrave ao funcionamento da economia. É esta ligeireza, esta esteriotipação, que esvazia o campo de análise e se converte no maior perigo para as instituições e para o diagnóstico sobre o seu funcionamento.
Claro que no sistema de Justiça nem tudo está bem! Há sectores onde existem importantes bloqueios, como, por exemplo, o caso das acções executivas. Esses bloqueios estão, porém, identificados e são ultrapassáveis com medidas legislativas e administrativas apropriadas.
A comunicação social tem o dever e a responsabilidade de informar com objectividade, rigor e verdade, sem precipitações, e com respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos. O direito de informar, apesar de tutelado no artigo 37º da CRP, não é um direito absoluto. Há limites que não podem ser ultrapassados, há direitos que não podem ser violados, como o direito à reserva de vida privada, o direito à imagem, o direito à honra, ao bom nome e reputação. Quando o direito de informar conflitua com qualquer destes direitos há que compatibilizá-los, há que balanceá-los de acordo com o princípio da concordância prática, segundo o qual se impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros.
A par desse dever, é também obrigação da comunicação social convocar para o espaço público do debate, numa atitude séria e construtiva, as questões que possam contribuir para melhorar o funcionamento das instituições democráticas.
Para que se cumpram estas finalidades é necessário bom senso, sentido de responsabilidade e observação escrupulosa das regras deontológicas. Não custará encontrar casos em que tais regras de conduta foram omitidas por agentes e órgãos da comunicação social.
Mas também é justo dizer que alguns operadores do sistema de Justiça não têm mantido comportamentos irrepreensíveis. São inúmeras as situações de violação do segredo de justiça, (quase sempre sem autor conhecido!), de violação do dever estatutário de reserva por magistrados e advogados, e de exposição mediática excessiva e dispensável.
É fundamental que a Justiça e a comunicação social assumam o compromisso de respeito recíproco pelo papel que cada um desenvolve na sociedade, e que observem as melhores práticas deontológicas e éticas nesse desempenho. Nesta relação difícil entre a Justiça e a comunicação social não há lugar para "o óptimo", apenas se logra "o possível".
Contentemo-nos com "o possível", na convicção de que tanto bastará para que cada uma cumpra o seu papel.
Henrique Araújo, Juiz Desembargador, Presidente do Tribunal da Relação do Porto
Diário de Notícias | 05-05-2017