António Ventinhas - O Ministério Público foi afastado do processo de inventário, deixando assim de poder tutelar de forma mais próxima o interesse de incapazes e ausentes.
Desde sempre o processo de inventário foi conhecido pela sua morosidade, litigiosidade e complexidade. Os inventários sempre foram uma espécie de folhetim interminável. Alguns casos arrastaram-se durante várias décadas até à sua conclusão. A morte sucessiva de herdeiros, a dificuldade em citar e determinar a identidade dos interessados e os sucessivos incidentes são comuns nos processos de inventário. Com uma duração média muito superior à dos restantes processos, este tipo de acção tinha uma influência muito negativa sobre o tempo médio de resolução processual. Este último índice é tido em consideração como um factor importante pelos investidores internacionais. Quem decide investir num país gosta de saber qual o tempo médio que um litígio demora a ser resolvido.
Num contexto fortemente marcado pelo plano de assistência financeira da troika, houve necessidade de melhorar os aspectos que permitissem captar o investimento estrangeiro, e este factor foi decisivo para a decisão politica de desjudicialização do processo de inventário. A definição do papel do Ministério Público num processo desjudicializado e o regime do apoio judiciário e de custas aplicáveis foram sempre três pontos muito sensíveis, que obstacularizaram durante muito tempo a saída dos processos de inventário dos Tribunais.
Num projecto muito inicial de alteração ao processo de inventário, recordo-me que o Ministério Público mantinha um papel similar àquele que desempenhava no processo judicial. No entanto, o Sindicato dos Magistrados do Ministério Público teve oportunidade de alertar para alguns aspectos importantes. A sobreposição das diligências poderia comprometer a representação em juízo e a produtividade dos Magistrados, face às deslocações a efectuar. Mesmo nas comarcas das grandes cidades, onde as distâncias entre o Tribunal e os cartórios são curtas, não seria muito difícil um Magistrado perder uma tarde com uma deslocação de ida e volta a um cartório mais distante. A situação seria mais complicada ainda em comarcas do interior que apenas têm um procurador.
Por razões de ordem prática o Ministério Público foi afastado do processo de inventário, deixando assim de poder tutelar de forma mais próxima o interesse de incapazes e ausentes.
Neste momento, tendo em conta a escassez de quadros, não é viável a deslocação de Procuradores a cartórios que, em alguns casos, são distantes dos Tribunais.
Os outros dois problemas que mencionei continuam por resolver.
No que concerne ao regime do apoio judiciário dos interessados, foi concebido um regime inédito e muito perigoso, que desonera o Estado das suas responsabilidades constitucionais de garantir o acesso ao Direito a todos os cidadãos. De acordo com o novo modelo, quem deve garantir o apoio judiciário dos interessados são os notários, através do desconto de uma parte dos honorários cobrados pela tramitação dos processos de inventário.
O novo regime estava condenado ao fracasso desde o início, pois assentou na premissa errada de que só uma percentagem muitíssimo residual de processos estaria isenta do pagamento de custas, o que não corresponde à realidade.
Por último, a definição do valor das custas a cobrar pelos notários levanta problemas complexos. Num sistema público de justiça, os Magistrados tramitam os processos independentemente das receitas que geram. Os notários são profissionais liberais e os seus proveitos financeiros resultam dos honorários que cobram. Os mesmos são obrigados a tramitar os inventários, independentemente das receitas que possam gerar, estando impedidos de recusar a sua tramitação.
Em alguns cartórios, os notários ficaram submersos com processos de inventário que geraram receitas diminutas, devido a grande parte das acções ser de valor reduzido, o que deu origem a um acréscimo de serviço substancial, sem que fosse possível aumentar a estrutura de funcionários. A generalidade dos notários preferia que lhes tivesse sido atribuída outra competência mais compatível com a sua formação e vocação.
A actividade notarial pauta-se, em grande parte, pela formalização de negócios consensuais ou certificação de documentos, e não por decidir litígios em que as partes têm uma grande animosidade entre si.
Actualmente há um número significativo de inventários que estão a ser tramitados nos cartórios, pelo que qualquer medida a tomar nesta área deverá ser muito bem ponderada e precedida de uma avaliação prévia cuidada.
António Ventinhas | Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 3
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