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REVISTA DE 2017

A confiança na justiça

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António Cluny - Importa não alimentar ilusões: as decisões judiciais, por mais bem fundamentadas e acessíveis que sejam, tendem sempre a privilegiar alguns direitos sobre outros.

A questão da confiança na justiça não pode ser analisada sem ter em conta a confiança que merecem aos portugueses os outros poderes do Estado: o exercício do poder.

A confiança que nela possam depositar não pode, na verdade, ser comparada com a que merecem alguns serviços públicos, por mais relevante que seja a utilidade social destes.

O exercício da justiça, independentemente da jurisdição que a exerça, impõe quase sempre pela força – a força da lei – uma solução que, na maioria dos casos, agrada relativa ou totalmente a uma das partes e desagrada parcialmente, ou em absoluto, a outra.

Tal como está cultural e constitucionalmente configurada, a justiça tem sobretudo como objetivo reconhecer direitos, procurando que sejam respeitados, ou que quem os violou possa ressarcir de alguma maneira os titulares daqueles que os viram infringidos.

Claro está que, em muitas situações, tudo se complica quando a justiça tem de dirimir conflitos que têm por base um diferendo entre direitos de natureza e grau diferentes que se sobrepõem ou entrechocam.

Uma melhor fundamentação das decisões permitiria, é certo, aos destinatários das mesmas uma mais fácil compreensão e, portanto, uma sua melhor aceitação.

Importa, porém, não alimentar ilusões: as decisões, por mais bem fundamentadas e acessíveis que sejam, tendem sempre a privilegiar alguns valores – traduzidos em direitos – sobre outros.

Essa opção depende muito da leitura que se faça da importância relativa dos direitos em causa.

Além de que as leis que a justiça aplica e cuja leitura crítica deve necessariamente fazer reproduzem, em geral, os consensos que são obtidos em cada momento na sociedade, em função das relações de força então existentes.

Por isso, o recurso à Constituição e à relevância que esta dá a determinados conjuntos de direitos sobre outros é fundamental.

As leituras que se fazem da Constituição não são, todavia, neutras: elas refletem também o posicionamento do intérprete na sociedade e na própria profissão.

Assim é mesmo que os estatutos das magistraturas, e mormente os dos juízes, lhes assegurem um elevado grau de independência e a garantia de respeito pela sua liberdade de consciência jurídica.

Daí que lhes seja difícil e mesmo incómodo romper com leituras estabelecidas mas que tendem, em muitos casos, a expressar pontos de vista jurisprudenciais já sedimentados, mesmo que em condições de desenvolvimento social diferentes.

Há nas nossas sociedades – e em especial no seio do mundo das leis – todo um sistema de conformação das decisões.

Este, se por um lado acrescenta previsibilidade e segurança, por outro condiciona a adequação da jurisprudência a novas realidades e soluções.

Desde as faculdades de Direito, passando pelas escolas de magistratura e advocacia e acabando na imprensa especializada ou nos media mais populares, tudo se conjuga para evitar surpresas ou leituras inovadoras da Constituição e das leis.

Assim, sempre que as contradições sociais se agudizam e os cidadãos se tornam mais conscientes dos seus direitos e, em muitos casos, adquirem e promovem uma evolução social (ou já cultural) com incidência no entendimento da sua importância relativa, a justiça vê-se confrontada com a dificuldade de abandonar as leituras estabelecidas da lei e de ser compreendida.

Por essa razão, a justiça entra muitas vezes em contradição com os anseios de vida singulares ou coletivos dos cidadãos.

Mais do que outros fatores, só a capacidade que a justiça possa ter para expressar com “justiça” tais anseios pode influenciar, de facto, a confiança que os cidadãos nela possam ter.

António Cluny | ionline | 07-03-2017

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