António Cluny - «Pensar a justiça sem eleger claramente os problemas culturais e sociais que ela deve sobretudo resolver e os objetivos políticos que ela deve atingir apenas permitirá aprofundar a desconfiança nela e a imagem da sua crise».
Na passada terça-feira foi apresentada em Lisboa a obra coletiva “40 Anos de Políticas de Justiça em Portugal”, com organização de Maria de Lurdes Rodrigues, Nuno Garoupa, Pedro Magalhães, Conceição Guerra e Rui Guerra Fonseca.
A obra espelha um conjunto de ideias de diferentes autores, uns estudiosos do tema, outros sobretudo protagonistas, a vários títulos, das reformas e políticas do sistema de justiça durante os 40 anos de democracia.
Nesse aspeto, o livro cumpre plenamente os seus objetivos, na medida em que espelha bem as diferentes abordagens que, no período em causa, foram sendo feitas sobre o sistema de justiça, seus problemas, sucessos e insucessos.
Paradoxalmente, ou talvez não, ao longo das mais de mil páginas que compõem a obra paira, mesmo quando não diretamente referido, o espetro omnipresente da “crise da justiça” como enquadramento de quase todos os textos.
Todavia, tal visão da “crise da justiça” aparece, em geral, distanciada da evolução da sociedade em que ela se dá – e, pelos vistos, se perpetua – e é apresentada como se apenas de um problema técnico se tratasse.
Como se toda a sociedade não estivesse, ela própria, em crise.
Mais, tal visão dos problemas da justiça portuguesa olvida ainda, quase sempre, o que paralelamente se foi passando nos sistemas de justiça dos países europeus a braços, também eles, com problemas idênticos.
A razão de ser desse limitado enfoque radica na ideia de que os problemas da justiça – como, aliás, muitos outros problemas sociais – se podem estudar numa perspetiva estática e desinseridos da cultura, dos objetivos políticos que são traçados para a sociedade e das contradições que nela, a cada momento, se geram.
Na apresentação da obra, alguém referiu – se não me engano, Laborinho Lúcio – que analisar os problemas da justiça e da confiança que nela têm, ou não, os cidadãos não pode ser feito sem, ao mesmo tempo, questionar as relações de poder no seio da sociedade, designadamente na parte em que elas respeitam à determinação dos sujeitos que – independentemente das normas legais – exercem, verdadeiramente, o poder que conta.
A esta ideia acrescentaria uma outra: a questão de como a sociedade portuguesa – e as latinas em geral – se relaciona com o poder, qualquer que ele seja e, portanto, também com o poder judicial.
Há anos, uma associação europeia de magistrados realizou um estudo sobre a justiça portuguesa.
Um juiz alemão que, enquanto perito, se deslocou ao nosso país para esse efeito, perguntou-me e a um antigo procurador-geral da Catalunha, também ele perito nesta missão, como era possível que os nossos códigos de processos estivessem recheados de tantas nulidades absolutas e se, desse modo, era possível concluir algum processo. Na Alemanha, referiu, compete ao juiz avaliar se, em concreto, a irregularidade processual afetou de facto os direitos da parte interessada, não sendo por isso automática a declaração da nulidade e os efeitos que daí derivam para o processo.
O espanhol, um magistrado experiente, nada disse de imediato, mas, no dia seguinte, retorquiu-lhe: “Sabes, no teu país, as leis são feitas para pessoas que acreditam piamente no poder e por isso é dada uma tão grande margem de decisão aos juízes; nos nossos, as leis são feitas tendo logo em conta a desconfiança dos cidadãos no poder e, por isso, elas têm de ser restritivas e refletir essa desconfiança.”
Pensar, pois, a justiça sem eleger claramente os problemas culturais e sociais que ela deve sobretudo resolver e os objetivos políticos que ela deve atingir apenas permitirá aprofundar a desconfiança nela e a imagem da sua crise.
António Cluny | ionline | 28-02-2017