Acordo. Profissões judiciárias manifestam vontade e entusiasmo em debater problemas da justiça e apresentar propostas. Porém, ex-bastonário Marinho e Pinto diz que isso é uma “utopia”
Quando chegou à comarca de Silves, o procurador António Ventinhas encontrou um cenário a roçar o catastrófico: trinta mil processos de execução, que estavam a ser trabalhados apenas por meia dúzia de funcionários, “sem um fax, uma digitalizadora e uma fotocopiadora”. “Havia um telefone”, recordou ao DN o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), que concorda com os juizes e o Sindicato dos Funcionários Judiciais num aspeto: faltam meios à justiça para esta cumprir a sua função e qualquer “pacto” que possa surgir terá esta questão como problema central.
“A falta de funcionários para dar andamento aos processos é consensual entre nós, os procuradores, juizes e advogados”, disse ao DN Fernando Jorge, presidente do Sindicato dos Funcionários Judiciais, para quem o desafio do Presidente da República para um “pacto” que comece nos chamados “operadores judiciários” é bem-vindo. “E ao contrário do que aconteceu no Congresso da Justiça, com anos de trabalho, em dois, três meses, as pessoas podem sentar-se e apresentar conclusões, porque os problemas estão há muito identificados”, referiu Fernando Jorge.
“A falta de meios, humanos e materiais é dos principais problemas, porque de nada nos vale fazer reformas sem depois ter os meios para concretizá-las”, acrescentou António Ventinhas. “Nos últimos anos, andaram a mascarar a falta de meios com leis”, concretizou o presidente do SMMP. Uma posição corroborada por João Paulo Dias, professor universitários e membro do Observatório Permanente para a Justiça: “Andar a fazer reformas só para manter o discurso reformista, não funciona. Um pacto para a justiça é positivo, mas este precisa de uma agenda, de se saber o que se quer e quais os passos.” Para este investigador, “fazer reformas como a do mapa judiciário sem investimento de curto-médio prazo não traz nenhum benefício, muito pelo contrário. É preciso investimento”. João Paulo Dias defende ainda mais análise e estudos sobre as reformas já feitas, como por exemplo a do mapa judiciário.
Ora, “investimento” quer dizer mais “despesa pública” e, com as admissões à função pública muito controladas, nos últimos anos o quadro de funcionários não foi reforçado. Isto mesmo recordou, ontem, o juiz presidente da Comarca do Porto, António Cunha, durante uma cerimónia de tomada de posse de 50 magistrados judiciais: “Recordo a carência de funcionários judiciais, que continua a verificar-se, apesar da entrada de 600 novos oficiais de justiça, mas as aposentações, entretanto ocorridas, ultrapassam esse número.”
Ainda assim, José Miguel Júdice, antigo bastonário da Ordem dos Advogados e um dos impulsionadores do Congresso da Justiça que, há 13 anos, juntou as principais profissões do setor, terminando com um conjunto de propostas entregues ao poder político, acredita ser possível, hoje, reeditar esse espírito, “haver consensos”, fazer uma espécie de “estados gerais”. Júdice lembrou que há 13 anos foram “centenas de horas de trabalho”. Hoje, a Associação Sindical dos Juizes dá um pontapé de saída para o debate, com a realização da conferência Que Justiça Queremos, encontro patrocinado pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que no final dos trabalhos poderá dar mais algumas pistas sobre a sua proposta de “pacto”.
Da realidade à “utopia”
Logo após o desafio do “pacto”, lançado na semana passada durante a cerimónia de abertura do ano judicial, as reações foram positivas, temperadas até com algum entusiasmo: a atual bastonária dos advogados, Elina Fraga, disse que o desafio de Marcelo Rebelo de Sousa foi “a grande mensagem”. Manuela Paupérrimo, vice-presidente da Associação Sindical dos Juizes, por sua vez, declarou ser necessário “convocar todos a participar numa solução”. “Pacto? Isso é uma utopia”, respondeu de imediato António Marinho e Pinto, ex-bastonário da Ordem dos Advogados. “Se o Presidente da República percebesse o funcionamento do sistema de justiça, não faria propostas utópicas”, considerou, para quem um encontro alargado entre os operadores judiciários apenas serviria para cada um “tentar satisfazer os seus egoísmos corporativos”.
“Há muitos interesses conflituantes”, acrescentou o advogado, não acreditando no sucesso da iniciativa. “A Assembleia da República é o poder soberano para legislar em matéria de tribunais. O poder político é que deveria colocar os tribunais ao serviço de quem a eles recorre e não das corporações”, finalizou.
Carlos Rodrigues Lima | Diário de Notícias | 07-09-2016
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