Paulo Baldaia - Vivemos num país em que o que deveria ser verdadeiramente importante é reduzido a fait-divers, porque as fontes da notícia são rapidamente reduzidas à descompensação que transmitem na comunicação que nos fazem. Sabemos que quando tudo é escândalo nada é escândalo, mas porque estamos nós a ignorar o que nos dizem Fernando Lima, assessor de Cavaco Silva nos 20 anos em que ele esteve no poder, e Carlos Alexandre, o juiz que tem em mãos os principais processos judiciais do país?
Lima, que anota matrículas e perde o sono pelo que lhe diz um mendigo, é de desconfiar. E Alexandre, que "refeiçoa" em casa porque tem poucos amigos na magistratura, pode estar a precisar de descanso. Vamos lá ter coragem, a mesma com que o juiz se apresenta, para dizer que não. Não, não estamos todos malucos. Entre muitas outras coisas, do livro e da entrevista, constatamos que Fernando Lima denunciou a quebra do segredo de justiça em conversas entre um magistrado e um chefe de Estado e que Carlos Alexandre nos confessou que anda a ser escutado. Isto não é grave? Em que raio de país vivemos nós? As denúncias de violação do segredo de justiça e de escutas a um dos mais importantes magistrados não merecem uma atitude enérgica do Ministério Público? Se consideram que os denunciantes não são credíveis, digam-nos para podermos ficar mais sossegados.
Um juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal, que tem em mãos alguns dos mais importantes casos do país, a ser escutado não é uma brincadeira de assobiar para o lado. Nós podemos, mas não devemos, achar piada às bocas sobre as contas em nome de um amigo, indireta a José Sócrates, mas temos mesmo de levar a sério quando ele nos diz que anda a ser escutado. É, aliás, um crime público, pelo que o Ministério Público não precisa de queixa formal de Carlos Alexandre para investigar e procurar apanhar os culpados. Não deixando de ser estranho que o juiz tenha a convicção de que está a ser escutado mas não apresente queixa na Procuradoria.
Ficamos com um gosto amargo na boca, quando percebemos que ninguém parece levar muito a sério o desafio que Marcelo Rebelo de Sousa lançou para que se faça um pacto na Justiça. Coisa tão séria, esta que pede o Presidente da República, a precisar de que o povo não continue convencido de que isto é tudo uma treta. Pois, se até não interessa para nada que Cavaco Silva possa ter recebido informações que estavam em segredo de justiça e Carlos Alexandre possa estar a ser escutado, esta é mesmo uma república a precisar de um tratamento de choque. Como se pode chamar justiça a toda esta brincadeira? Tenham respeito pelos portugueses, a justiça não pode ser um reality show.
Paulo Baldaia | Diário de Notícias | 11-09-2016
Comentários (0)
Exibir/Esconder comentários