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REVISTA DE 2016

Justiça está pior que antes do 25 de Abril?

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João Paulo Raposo - Duas pessoas que podemos, à falta de melhor termo, afirmar que têm estatuto de "senadores" da República, por sinal ligados aos partidos que se têm assumido alternativamente como liderantes do governo, em intervenções próximas, sustentam que a justiça é do pior que o país tem.

Um estabelece uma comparação com os outros sectores de actividade, afirmando-a o pior de todos. Outro estabelece uma comparação histórica, afirmando que a justiça será o sector (único) que não está melhor desde instituição do sistema democrático. Falo de recentes intervenções públicas dos Drs. António Barreto e Rui Rio.

Além do respeito pela liberdade de opinião, que deve ser universal, a primeira consideração a fazer é a de que assim é fácil ser "senador"... Não se vislumbra um fundamento, uma lógica ou sequer um raciocínio consequente de premissas claras. São apenas afirmações sem suporte, embrulhadas na "autorictas" de quem as emite e, portanto, gratuitas. Assim, repete-se, é fácil ser "senador"...

No subtexto (ou no próprio texto) de ambas percebe-se uma intenção de alteração profunda do sistema de justiça por impulso do poder político. Este tipo de ideias nunca serão boas. Ou serão más ou péssimas. Admitindo-se que assentem apenas em pura e simples falta de conhecimento da realidade, serão más. Se além disso, fossem verdadeiras manifestações de intenção de limitação ou cerceamento da acção da justiça pelo poder político-legislativo, porque antidemocráticas, seriam péssimas.

Centremo-nos na versão má, que é certamente a que ocorre no caso, tratando-se de pessoas de cultura democrática reconhecida, estamos no eterno regresso à retórica da "opacidade". O sistema está mal porque é "opaco". Fazer-se uma afirmação deste tipo, sem mais, é mais ou menos o mesmo que dizer que, "para mim, a astrofísica ou a física quântica são opacas". Tudo o que eu não percebo é, para mim, opaco. A primeira questão é, portanto, a de saber, a que opacidade nos estamos a referir e o que queríamos que fosse mais transparente.

Admitindo que a transparência e a compreensibilidade da justiça são, em si mesmas, elementos de uma boa justiça, é preciso não esquecer a natureza do tronco central da mesma. A boa justiça dá a cada um o que tem direito, de forma igual para todos os cidadãos e do modo mais célere que for possível. Nesse sentido, com muitos problemas e dificuldades, basta ter um conhecimento mínimo da realidade, olhando, que mais não seja, o posicionamento da justiça portuguesa nos rankings internacionais, para atestar o erro, crasso, de tais afirmações. Se, além disto, se atentar no esforço continuado que tem sido feito para que o país tenha, de facto, uma justiça para todos e não uma justiça "forte com os fracos e fraca com os fortes," mais claro fica tal erro. Muito haverá a evoluir e melhorar mas, daí até às afirmações feitas, vai a distância, abissal, entre o correcto e o puro e simples disparate.

Fechado o que antes se disse, para que não se diga que o texto sofre de "corporativite aguda", tracemos rapidamente dois problemas graves da justiça portuguesa actual que, ainda que de modo totalmente diverso, não deixam de ser tocados pela lógica de tais intervenções.

O primeiro é o défice de comunicação. Isto é coisa diferente da tal "opacidade retórica". A falta de comunicação é uma dificuldade, que é clara, patente e grave, de explicação pública do modo de funcionamento do sistema e da lógica e sentido de certas decisões. Uma coisa é admitir-se que o sistema funciona em bases legais e democráticas, mas mal comunicadas. Outra é por-se em causa o próprio funcionamento do sistema, o que, inevitavelmente ocorre quando se fala em "opacidade", sem nada mais dizer.

O segundo grande problema continua a ser o défice de gestão. Mas aqui a justiça está a par de muitos outros sectores. A falta de organização e gestão é um dos grandes problemas do país, do sector público, e também do sector privado. Muito do debate sobre a gestão (da justiça e, possivelmente, de todos os sectores) é, e continua a ser, contaminado pelo nosso proverbial provincianismo. Este, de que já falava Fernando Pessoa, leva a que olhemos para tudo o que vem de fora como o "bom" e "certo". Leva-se uma injecção de "MBA", com umas generalidades, para não dizer baboseiras, mais uns termos em inglês, e acha-se que já temos, devidamente encartado, um grande gestor. E é isto que se acha que é "gerir", na justiça, como em qualquer área.

A boa gestão necessita, antes de tudo, dos três critérios essenciais: Seriedade, inteligência e trabalho. Precisamente por esta ordem.

Quando se fala de seriedade não se está a pensar na não prática de crimes. Essas "patologias" podem ocorrer em qualquer latitude. O que temos de mais específico fica bem claro numa frase que ficou (tristemente) célebre: - "Aos meus amigos, tudo; aos meus inimigos, nada; aos meus "neutros", o que é de lei". Enquanto em Portugal, em qualquer área, não vigorar o princípio de "aos meus amigos, o que é de lei; aos meus inimigos, também o que é de lei e aos meus "neutros", ainda e sempre, o que é de lei" não iremos a nenhum lado. Com amiguismos e compadrios tudo o que seja afirmar ideias de "gestão" e "resultados" é pura conversa fiada.

Os outros dois são mais ou menos auto-explicativos. A inteligência antes do trabalho é um mero princípio da física. Aplicar força sem critério não faz mexer pedra nenhuma. É a inteligência na gestão que leva a colocar a alavanca no ponto certo. O trabalho fará depois o movimento da mesma.

Fechando o círculo. Melhore-se a comunicação. Faça-se gestão do sistema com seriedade, inteligência e trabalho e a história da "opacidade" (ou outras afirmações gratuitas contra a justiça do mesmo tipo) cairão, naturalmente, como um castelo de cartas...

João Paulo Raposo, Secretário Geral ASJP | Opinião Sábado | 13-04-2016

Comentários (2)


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Bom texto.

Diz-se no texto que pessoas certamente representativas do melhor que temos em Portugal afirmaram algo como «a justiça é do pior que o país tem».

Em primeiro lugar, quando falam em «justiça» referem-se a quê? Às polícias, à investigação criminal liderada pelo ministério público, aos tribunais?
A justiça é pior em quê? O que querem dizer?

A mim parece-me que a justiça não é nem mais nem menos que o reflexo da sociedade que temos: cada povo tem exactamente a justiça que merece.
Por exemplo, um povo composto por uma grande fatia de pessoas incumpridoras crónicas, sugadoras dos bens públicos, mentirosas e promotoras ou indiferentes à proliferação da corrupção, não pode esperar, por exemplo, o milagre de ter um sistema de justiça acima da média.

E também me parece que o sistema de justiça é um dos sectores da sociedade onde o bom desempenho é mais difícil.
Com efeito, num hospital toda a gente congrega esforços para salvar o doente; nas escolas todos se esforçam por ensinar os alunos; nas empresas todos procuram atingir os objectivos, etc. Mas nos tribunais todos estão em pé de igualdade, todos são ouvidos e requerem tudo o que entendem ser de direito ou não; cada um «puxa a brasa à sua sardinha» e se uma parte tem interesse em que o processo ande rapidamente a outra tudo faz para o retardar: um campo de batalha.

Mas se a justiça é do pior que temos no país, qual será a opinião dessas pessoas acerca dos governos que nos têm governado desde o 25 de Abril e que nos conduziram a sucessivas bancarrotas, ao ponto de termos de pedir dinheiro emprestado ao estrangeiro para viver e pagar salários e reformas?
E o que pensarão essas mesmas pessoas das diversas entidades reguladoras, pagas a peso de ouro, e do sistema financeiro que tem sugado e continua a sugar milhões de euros aos contribuintes?
alberto ruço , 19 Abril 2016 - 15:38:01 hr.
...
Sim, a Justiça vai mal e continuará mal, sendo até o único que não melhorou no após 25 de Abril de 1974.

Aceitemos, por necessidade de raciocínio. Vejamos agora: a banca vai melhor? A gestão das empresas em geral vai melhor? A escola vai melhor (da primária à universidade, entenda-se. por mim, que tenho dois filhos, um na universidade e outro à porta, bem gostaria que assim fosse)? A segurança vai melhor? And so one, and so one... Numa coisa vai melhor, sim, mas não enche a barriga de quase ninguém: pode-se dizer as asneiras que se quiser que se não é incomodado, tal como estes dois artistas da peça.
melhoras, they said , 19 Abril 2016 - 16:21:11 hr.

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