Quando é pedida uma fatura em nome de empresa as Finanças enviam notificação de penhora de créditos. Malha apertada Se for almoçar ou jantar fora num estabelecimento com dívidas fiscais e pedir fatura em nome da empresa, corre o risco de receber uma notificação das Finanças, que denuncia o contribuinte.
Há contribuintes que estão a ser chamados pelas Finanças para pagarem dívidas fiscais de estabelecimentos comerciais, nomeadamente de restaurantes, onde fizeram consumos e pediram fatura com número de identificação fiscal (NIF). O problema é que estão em causa meras compras, pagas de imediato, que não dão lugar à constituição de créditos nem espaço para penhoras. A isto soma-se o facto de, ao denunciar aos clientes as dívidas, o Estado tornar pública informação fiscal sensível, mesmo quando estão em causa quantias pouco significativas.
O caso contado ao IN por um empresário de restauração está longe de ser único. Tudo começou por uma dívida fiscal a rondar os dois mil euros, que não foi paga e seguiu para execução fiscal. Há cerca de dois meses, este empresário recebeu um telefonema de um cliente, que se queixava de ter recebido uma comunicação do Fisco informando-o de que o restaurante onde tinha ido, e onde tinha pedido fatura, com o NIF da empresa para onde trabalha, tinha dívidas fiscais e que ele tinha sido intimado a pagá-las.
"Fiquei envergonhadíssimo. Pedi desculpas ao senhor, mas fiquei indignado. Estou já a regularizar a situação. Num negócio como estes, é muito mau andarem a informar os clientes das nossas dívidas". A surpresa foi ainda maior quando, há cerca de três semanas, e com um intervalo de poucos dias, recebeu mais dois telefonemas de clientes a queixar-se do mesmo.
"Somos perseguidos que é uma coisa maluca", desabafa o empresário, que solicitou o anonimato. A penhora de créditos de terceiros, presentes ou futuros, está prevista na lei e é uma das soluções a que a administração fiscal recorre para cobrar dívidas. A diferença é que, nestes casos, a notificação de penhora de créditos é enviada sem que tenha havido a constituição de qualquer crédito.
Para o bastonário da Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, Domingues de Azevedo, que disse ter conhecimento de vários casos, estas situações são um abuso e acontecem "porque há uma utilização indevida da informação do e-factura".
"Um crédito, para existir, tem de se constituir e nestes casos não há lugar a qualquer constituição de créditos. A conta é paga no imediato", referiu, por sua vez, ao IN, o especialista em assuntos fiscais Manuel Faustino, acentuando que a situação não se altera, mesmo que o cliente notificado volte a fazer compras no mesmo estabelecimento. Ou seja, o cliente, se voltar por exemplo a um restaurante, quando pagar a conta deve fazê-lo como habitualmente, não tendo nenhuma obrigação de entregar o dinheiro ao Fisco.
Sistema informático "cego"
Sendo este o desfecho, Manuel Faustino acentua a sua inutilidade, sublinhando que apenas servem para consumir recursos à Autoridade Tributária (AT), para fazer os contribuintes perder tempo, além de tornar pública informação fiscal de outros contribuintes.
Nas notificações de penhora de créditos a que o IN teve acesso (imagem ao lado), a AT avisa que o contribuinte terá de declarar através do Portal das Finanças "se o crédito existe, quais as garantias que o acompanham, em que data se vence e quaisquer outras circunstâncias que possam interessar à execução". Mesmo não havendo valores a canalizar para o Fisco, o notificado tem de comunicar que não há nada a pagar porque não créditos (ler texto nesta página).
O jurista Pedro Marinho Falcão sublinha, ainda, a falta de sentido e de resultados práticos destas notificações e refere que na sua origem está o novo sistema de faturação.
Enquanto até há uns anos a AT apenas notificava os credores que surgiam no mapa recapitulativo do IVA remetidos pelas empresas (e onde constavam apenas aqueles cujas transações superavam os 25 mil euros anuais), agora passou a considerar como potenciais credores todos os NIF (de empresas ou de empresários em nome individual) que lhe surgem nas faturas comunicadas ao portal. Como o sistema informático é "cego", não distingue as faturas de uma refeição de um crédito verdadeiramente existente e constituído.
Em resposta ao IN, fonte oficial do Ministério das Finanças afirma que a "AT encontra-se legalmente obrigada, através dos seus órgãos de execução fiscal, a promover a cobrança de dívidas cuja cobrança lhe esteja atribuída" e que a penhora começa pelos bens cujo valor pecuniário seja mais fácil de realizar, nomeadamente por rendas, saldos de contas e/ou créditos. Mas acentua que a penhora de créditos apenas "respeita a aquisições efetuadas pelo destinatário enquanto sujeito passivo inserido numa atividade económica, não abrangendo consumidores finais".
Como agir
Ordens de penhora não podem ser ignoradas
• Ignorar uma ordem de penhora pode sair cara, mesmo quando quem a recebe não é o responsável pela dívida que a originou. Nas notificações que chegam aos contribuintes vem, por regra, o aviso de que se não a cumprirem podem vir a ser responsabilizados pelo pagamento dos impostos em falta. E por este motivo, Pedro Marinho Falcão alerta que, mesmo quando não há qualquer tipo de créditos penhoráveis, o notificado tem sempre de ir ao Portal das Finanças sinalizar esta situação. A penhora de créditos é uma das mais frequentes, a par das de rendas de imóveis ou de contas bancárias.
"Este tipo de notificações apenas gasta recursos. São completamente inúteis"
- Estas penhoras de créditos que afinal não existem e que são emitidas apenas porque há faturas que ligam o devedor ao notificado fazem sentido?
- Não. Este tipo de penhoras é inútil e apenas gasta recursos. Porque estamos a falar de consumos instantâneos, em que a pessoa consome e paga. O problema é que o sistema que emite as notificações não distingue este tipo de relação comercial daquelas em que há lugar à constituição de créditos.
- Se o cliente voltar à loja ou ao restaurante depois da notificação, pode pagar a conta ou tem de entregar o valor ao Fisco?
- Não tem de entregar o valor ao Fisco. Paga a conta como habitualmente porque não há lugar à constituição de um crédito. Deve, no entanto, ter a preocupação de ir ao Portal das Finanças assinalar que não há créditos, para que a questão fique encerrada. Não o fazer pode ter consequências graves, porque pode ser responsabilizado no âmbito de uma reversão pela dívida do executado.
- Conhecia esta situações?
- Sim. O meu escritório recebeu já uma notificação destas na sequência de uma compra ocasional que fizemos.
Associação surpreendida promete investigar denúncias
A Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP) reagiu com estupefação quando foi confrontada pelo IN com a circunstância de o Fisco estar a denunciar a clientes dívidas fiscais dos restaurantes que frequentam. "Reagimos com surpresa. Nunca nos tinha chegado qualquer queixa de nenhum associado", referiu fonte da estrutura. A associação já entregou a questão ao departamento jurídico para averiguar se há lugar ou não a contestação - seja do foro legal ou de outra ordem. O facto de não haver queixas formalizadas pode estar relacionado com o pudor que alguns empresários poderão sentir em expor a sua situação fiscal.
António (nome fictício) foi um dos empresários em nome individual que receberam uma notificação de penhora de créditos relativa a um restaurante onde tinha ido almoçar. "Sou empresário, mas a empresa sou eu só, porque sou um recibo verde". Pediu fatura, dando o NIF da empresa, e recebeu uma carta das Finanças para saldar a dívida do restaurante. Foi aconselhado pela contabilista a ir ao Portal das Finanças declarar que o respetivo restaurante não lhe devia nada.
Restauração
Bolos penhorados por dívida de 91 mil euros: A dívida do restaurante ascendia a 92 mil euros. Não chegou penhorar a conta bancária, também foram penhorados... quatro bolos, no valor de 30 cêntimos, através da guia de transporte. O caso aconteceu em fevereiro e a empresa contestou a decisão em tribunal. Prestaram uma garantia para suspender a ação fiscal, mas as penhoras mantiveram-se.
Habitação
Passou de devedor a credor do Fisco: O caso, invulgar, foi noticiado pelo IN a 24 de março: José Valente viu a casa em que morava ser penhorada pelas Finanças por causa de uma dívida do IML Depois da venda em leilão e de tudo pago, sobraram cerca de 17 mil euros. O dinheiro não lhe foi entregue. Ficou sem a casa onde morava, mas passou de devedor a credor do Fisco. Por uma dívida de 800 euros de IMI.
Pronto-a-vestir.
Dívida trava compra de lingerie feminina: O caso passou-se no final do ano passado. Dívidas fiscais de uma contribuinte levaram a administração fiscal a emitir uma ordem de penhora de uma encomenda de roupa interior que tinha feito no site de uma marca norte-americana. A encomenda - cujo valor rondava os 300 euros - acabaria por nem sequer chegar a sair do Aeroporto Sá Carneiro.
Apoio social
Nem comida para os pobres escapou: Nem os bens alimentares de uma associação que ajuda os mais desfavorecidos escaparam. O "Coração da Cidade", do Porto, viu ser-lhe executada uma penhora dos bens alimentares que entretanto já distribuíra por centenas de famílias carenciadas. As dívidas estavam relacionadas com portagens das ex-Scut. Depois da denúncia, as Finanças levantaram a penhora.
Lucília Tiago e Pedro Ivo Carvalho | Jornal de Notícias | 11-04-2015
Comentários (3)
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O negócio das penhoras
(...)
Isabel Nery (artigo publicado na VISÃO 1151de 26 de março)
http://visao.sapo.pt/gen.pl?p=print&op=view&fokey=vs.stories/815093&sid=vs.sections/25047
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