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REVISTA DE 2015

Separação de poderes é à vontade do freguês

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Nuno Saraiva - A entrevista já é velha, de uma semana. Mas o assunto, ao contrário dos processos judiciais, não prescreve. Paula Teixeira da Cruz apoquentou-se com a hipótese de o PS, ganhando as próximas eleições, ameaçar o princípio sagrado do Estado de direito que é a separação de poderes. Vem esta inquietação da Dra. Teixeira da Cruz a propósito da investigação ao ex-primeiro-ministro José Sócrates, e da forma como os socialistas têm lidado com este e outros casos de polícia.

Vamos a factos. É verdade que a classe política no geral, e os partidos com vocação de poder em particular, convive mal com a investigação criminal, sobretudo quando esta atinge apparatchiks ou correligionários de partido. Exemplo disso foram as mais recentes e lamentáveis declarações públicas do "pai fundador" do PS que, em jeito de ameaça, deixou ao juiz Carlos Alexandre o aviso para "que se cuide".

Com todo o respeito que o Dr. Soares me merece - e é bastante -, é intolerável numa democracia e num Estado de direito que, seja quem for, ainda para mais um ex-presidente da República, intimide e pressione desta forma despudorada um magistrado titular de umprocesso.Ahistória política portuguesa regista vários episódios como aquele em que um ex-governante afirmava numa reunião partidária que era chegada a hora de "partir a espinha aos magistrados". Ou o outro em que, em pleno auge do processo Casa Pia, um chefe de bancada se excedia dizendo estar-se "cagando para o segredo de justiça". Do lado das magistraturas não faltam também exemplos de politização da justiça e de atropelos ao Estado de direito. Em 2010, o então presidente da Associação Sindical dos Juizes fazia alarde, em artigo de jornal, da intenção de, sem hesitações, "incomodar os boys do PS".

É fácil concluir que, nesta matéria, não há espaço para virgens ofendidas. Sucede, porém, que a Dra. Teixeira da Cruz padece de um problema de credibilidade e falta de autoridade moral para expor em voz alta os seus temores. Uma ministra da Justiça, a quem compete o zelo pelo regular funcionamento do sistema judiciário, que perante buscas efetuadas a ex-ministros de um partido que não o seu ou a detenção para investigação de altos funcionários da administração pública decreta de imediato uma falta-"a impunidade acabou", sentenciou-, condenando à partida e sem julgamento meros suspeitos sem culpa formada, não faz outra coisa que não seja pôr em causa o sacrossanto princípio da separação de poderes. Uma ministra da Justiça que fala para o telefone como se fosse um gravador, sem mexer uma palha para acabar com a baderna em que se transformaram as escutas telefónicas e as violações grosseiras do segredo de justiça, e que se cala bem caladinha perante os julgamentos feitos na praça pública sem que haja culpa formada, não faz outra coisa que não seja pôr em causa o Estado de direito.

Convenhamos que a Dra. Teixeira da Cruz, com base apenas neste breviário de afirmações, devia ter ao menos o decoro de não abrir a boca e de não se arvorar em paladina da defesa do Estado de direito e da separação de poderes que, manifestamente, não é. Além de que a declaração feita ao i é de enorme gravidade por também ela configurar uma pressão intolerável sobre a investigação e os magistrados e uma prova de desconfiança insuportável na Justiça.

Traduzindo, de forma livre, aquilo que a Dra. Teixeira da Cruz está a dizer é, na prática, o seguinte: apressem-se a acusar, a julgar e a condenar. É que os malandros dos socialistas estão às portas do poder. E mal se apanhem no poleiro, já não se fará justiça porque esta fica capturada por eles. Isto é, a defesa do Estado de direito feita pela ministra da Justiça só não é um conto de crianças porque, nesta lógica de separação de poderes à vontade do freguês, o final não deixará de ser trágico.

Nuno Saraiva | Diário de Notícias | 15-02-2015

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