Miguel Romão - A protecção da privacidade de cada um começou a ser levada a sério quando, no final do século XX, a jurisprudência norte-americana se debruçou sobre um então "right to be let alone" - num português apressado, o "direito de ser deixado Em paz" e com a sua privacidade intocada.
Não significava aquela defesa um direito geral e absoluto de alguém beneficiar apenas de silêncio sobre si e à sua volta, o que seria incomportável para um Estado democrático ou para uma imprensa livre. Mas significava que se descobria agora um reduto de informação e de percepções públicas que deveria ser especialmente tratado, sob pena de se proteger melhor os bens e a integridade física do que o demais que nos completa e define, afinal, como pessoas: desde logo, a informação sobre nós próprios.
O desenvolvimento tecnológico das últimas décadas e a convicção de que a segurança e a ordem públicas aumentam a sua intensidade na mesma proporção em que diminua a privacidade têm vindo a acelerar as compressões sobre o direito à privacidade de forma acelerada. Seja nos telefonemas e emails repetidos, de entidades conhecidas e desconhecidas, que propõem e tantas vezes contratam sozinhas o inimaginável para o seu interlocutor. Seja nos exemplos mais recentes de entidades públicas que fabricam listas de contribuintes especialmente protegidos ou de condenados a uma nova pena dupla de prisão e de humilhação/fiscalização públicas.
E, num contexto em que cada um pode, hoje como nunca antes, oferecer-se aos demais por sua iniciativa, os poucos que resistem a essa tentação são rapidamente espoliados de uma ideia de participação plena na comunidade, desde logo como consumidores. Poder saber e poder analisar tudo sobre todos surge, assim, como um direito indizível, mas em que assenta muito do modelo em que funcionamos hoje. E se na história houve tempos em que os direitos indizíveis mudaram o mundo para melhor quando passaram a ser expressos, seguramente que este não será o caso.
Miguel Romão, Professor FDUL | ionline | 31-03-2015
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