In Verbis


icon-doc
REVISTA DE 2015

Os magistrados são pessoas

  • PDF

Ultimamente gerou-se por aí muita celeuma a propósito de declarações públicas provindas de um senhor advogado, mandatário num processo mediático, referentes à existência de um grupo secreto de magistrados (no Facebook), onde juízes e magistrados do Ministério Público comentariam com alguma boa disposição as notícias do dia.

A alegada "notícia" teve ainda honras de publicação em revista cor-de-rosa, daquelas em que os cavalheiros não pegam e as senhoras só lêem no cabeleireiro. Aventa-se que tais notas de boa disposição, a serem reais, foram surripiadas do grupo secreto por acto criminoso e por obra de um dos seus membros que as vendeu.

A este propósito surgiram comentadores vários, magistrados e não magistrados, cidadãos identificados ou anónimos, políticos e politiqueiros, gente daqui e dali, que divido em quatro tipos:

a) Os professores de ética: alegadamente perfeitos e incapazes de cometer um deslize tal como o seja o comentar de notícias em roda de amigos. Defensores de um inexistente mas proclamado código ético, proclamam que as magistraturas devem ser ocupadas por (não) pessoas, ou seja, por entes superiormente perfeitos, que não comentam nada, não riem de nada, não comem nem bebem à vista de ninguém, e nem sequer vão aos toiros, como eu e o meu amigo Carlos da Maia. A "perfeição" dos professores de ética encaixa melancolicamente bem naquilo que o povo costuma designar por "santos de pés de barro". Todavia, nas vidas privadas destas perfeições encontra-se de tudo um pouco, que a vir a lume, deitaria inexoravelmente por terra as magníficas auréolas com que ostentam os régios crânios. É desses que já fala Fernando Pessoa no seu Poema em linha recta.

b) Os celerados: os que invejam tudo e todos, os que dizem mal de toda a gente só pelo gozo parvo de dizer mal que lhes enche a conspurcada alma, que têm uma auto-estima de barata em restaurante de beira de estrada e andam pelos cantos rosnando "Bem feita!". Na prática, os celerados são da mesma espécie rastejante do bufo em causa, mas a quem não foi dada a oportunidade de pactuar com gente influente, nem a quem foi proposta a compra de "notícias" a quem só pretenda vender papel a quilo e orquestre a descredibilização das magistraturas. Estes infiltram-se em todas as classes e, infelizmente, as magistraturas não estão livres deles, antes pelo contrário. Congratulam-se com o mal alheio e permanecem nas tocas fedorentas exalando ódio e inveja.

c) Os cobardes: algo parecidos com os celerados mas sem tanta habilidade para o mal, os cobardes são os que correm a esconder-se debaixo de uma pedra assim que se deparam com uma onda mais alta que lhes abane a morrinhenta existência. É gente que não vive, mas antes ocupa espaço. Dotados de vara na mão, vestem a beca e entram na sala de audiências dotados de vozeirão e autoridade mas, geralmente, sem um pingo de humanidade ou de bom senso. No entanto, têm medo de tudo e de todos. Acagaçam-se apenas ao ouvir a mera referência a entidades disciplinares e vivem "com a cabeça entre as orelhas", num pasmo de susto, que conseguem exorcizar por momentos, ao exercer autoridade sobre outros. Assim que lhes cheira a problema, é pernas-para-que-vos-quero! São deste jaez os que deixam por terra os camaradas feridos em combate porque conseguem correr mais do que eles.

d) Os que se indignam. E quando digo "os que se indignam", já não preciso de os descrever. São os bons, os puros, os que lutam por uma sociedade melhor, mais livre, mais participada e mais independente. São os que, quando de beca vestida, se condoem das pessoas que julgam. São os que não precisam de provar nada a ninguém. São os que interiorizaram que os direitos constitucionais devem ser exercidos por todos, e que toda a gente é pessoa. São os que exercem o poder-dever de lutar pela manutenção do Estado de Direito em todas as suas vertentes. São os que não discriminam. São os que prezam a liberdade, a independência e a imparcialidade acima de tudo. São os humildes. Os que não carecem de achincalhar ninguém na sala de audiências só para provar a sua condição de macho ou fêmea "alfa". São os que se revoltam contra as injustiças. Os que falam. Os que defendem os outros. Os que não fogem. Os que não têm medo.

Surjo no meio disto tudo como um campino no Ribatejo, disposto a correr de varapau a insidiosa cobardia que se começa a instalar. O medo grassa nas magistraturas, obra rasteirinha mas bem engendrada de hostes bem organizadas. E no meio disto tudo assola-me the million dollar question: a quem interessa vergar a cerviz das magistraturas? A quem interessa reduzir a escombros o poder judicial?

A essa pergunta, a que bem sabem responder os professores de ética, alvitram estes respostas politicamente correctas, bem desenhadas, bem estruturadas, cheias de bonitas palavras e bonitos conceitos, mas que nada dizem, porque no fundo, não é de bom tom hostilizar o poder político e acima de tudo o poder económico, e as verdades, essas, só se revelam em conversas de almofada ou sequer nem aí.

Os celerados surgem impantes em roupas de gala alvitrando conceitos e polindo sapatos alheios, sempre atentos e obrigados, pois as migalhinhas que caem da mesa dos poderosos são néctar e mel nas suas bocas.

E os cobardes, mais uma vez, resmungam no fundo das suas tocas. Porque não têm coragem para ser bons nem para ser celerados e essa indistinção ainda os torna piores do que se fossem descaradamente maus.

A assistir a tudo, o pacato cidadão que, em virtude dos desvarios com que certa imprensa lhe vem alimentando os gostos, já se habituou a que em Tunes há sempre um Bei, é desancá-lo enquanto pode. Neste caso, o Bei de Tunes são as magistraturas e sová-las parece sempre bem.

Diga-se, em abono da verdade e em primeiro lugar, que é inquietante e gera perplexidade o facto de certa imprensa, a coberto de uma alegada liberdade de informação, fazer uso de um infiltrado que revela conversas privadas entre amigos para alimentar ódios de estimação contra as magistraturas. Em segundo lugar, que todos têm direito à liberdade de expressão e de reunião e de livremente dizer o que pensam (desde que a lei não seja violada e neste caso não foi).

Sim, meus amigos. Todos. Até mesmo os magistrados. Porque fora do exercício de funções, despida a beca, largado o serviço, os magistrados são pessoas. São pais e mães. São filhos e avós. São mulheres e maridos. Têm dívidas para pagar. Contabilizam o seu salário para pagar as contas, como qualquer outro português. Têm a casa para limpar, e muitas vezes são os próprios que, quando chegam a casa, a desoras, dão banho aos filhos, fazem o jantar, limpam a casa, põem roupa a lavar, e ainda passam uma roupa a ferro antes de ir acabar aquela sentença do julgamento da semana passada, porque se a mesma tarda, o inspector está alerta. E não adianta se já são duas ou três da manhã, e se às 8 têm de levar os filhos à escola e correr para o trabalho, agora situado por vezes a muitos quilómetros da residência. Os magistrados choram, os magistrados riem, os magistrados torcem pelo seu clube de cachecol ao pescoço, os magistrados alegram-se e sofrem como qualquer outro. E sangram como qualquer outro. E o seu sangue é da mesma cor do de qualquer outro.

As expressões direito à liberdade de expressão e direito à reserva da intimidade da vida privada (a qual não se circunscreve apenas à família, mas também ao núcleo social onde cada um se insere) não são apenas conceitos vagos e ocos, mas antes em vigor e com uma precisão bem recortada, e o magistrado como pessoa e como cidadão tem os mesmos direitos que qualquer outro cidadão deste País. Mas a forte compressão que alguns círculos tentam lograr exercer sobre os magistrados está a atingir um nível eticamente intolerável.

Há que perguntar ao povo português se é este o tipo de magistrados que ele quer ter a julgar e decidir os seus casos, a decidir sobre a sua vida e a sua propriedade: magistrados atemorizados, acorrentados a ordens superiores, com medo da própria sombra, vergados ao poder económico e sem força para levantar a cabeça?! Querem juízes com medo? Querem juízes submetidos ao poder executivo e a interesses económicos? Querem juízes que antes de decidirem os casos concretos se submetam a instruções superiores de lojas maçónicas? É que se é isso que querem, é isso que vão ter num futuro próximo. E aí, ai do Estado de Direito Democrático que Abril nos deu. Cabe a todos nós parar para reflectir muito seriamente neste assunto e reflectir com a inquietação de quem sabe quais as linhas por onde se cosem certos interesses económicos e quais as tramas de que se servem para subjugar quem lhes pode fazer frente.

O que dizer de um órgão de comunicação social que torna pública uma conversa que os seus intervenientes não quiseram que fosse pública? Que interesses serve esse órgão de comunicação? O dever de informar não é decerto. Esta, como muitas outras "notícias" que têm vindo a ser fabricadas, pretendem apenas corroer uma magistratura já de si debilitada pela falta de condições de trabalho.

É tempo de todos abrirem bem os olhos e os ouvidos e pensarem bem a quem convém ter uma magistratura acobardada. Pois uma magistratura forte, independente e imparcial é a única coisa que separa o povo de uma ditadura.

E começa aqui. Os magistrados são pessoas. Não são aqueles seres míticos e híbridos entre deuses e homens. São iguais aos cidadãos que julgam. Nem mais, nem menos.

Negar-lhes o direito à liberdade de expressão, em espaço reservado, entre os seus pares, além de indigno, é fascista.

Exceptio Plurium | 06-03-2015

Comentários (12)


Exibir/Esconder comentários
...
Excelente texto, escrito com arte e mestria, e com requintado sentido de humor que me arrancou algumas gargalhadas.
E poderia subscrever o seu conteúdo, não fora o facto de tudo ter partido do Facebook. É que o dever de reserva impõe que se tenha cuidado com o que se diz e aonde se diz, justamente para evitar o que aconteceu aqui. Será que os senhores magistrados eram tão ingénuos, ou tão tecnoignorantes que acreditavam que podiam lavar a alma e desabafar .... no Facebook ? NO FACEBOOK ???
Provavelmente todos os que participaram nos festejos jamais irão julgar o caso concreto que os levou a festejar. Mas isso não é relevante. O mal já está consumado. O dano na imagem de isenção está feito. Uma coisa é sabermos que em privado são pessoas como as outras, o que é Lapalissiano. Outra é lermos com estes olhinhos que a terra há de comer os comentários por eles escritos no Facebook !
Hannibal Lecter , 08 Março 2015 - 11:08:54 hr.
...
A liberdade também passa pelo Faceboock e pela net em geral. Por exemplo, por aqui.
Sun Tzu , 08 Março 2015 - 14:37:14 hr.
...
Caro Sun Tzu: se encarar os magistrados como funcionários, embora superiormente qualificados, mas mesmo assim funcionários, concordo consigo.
Agora, se os quisermos ver como um corpo à parte, como pessoas que exercem um poder especial e particularmente melindroso, o de julgar os outros, alguma cautela é exigível. Com poderes especiais vêm deveres especiais.
Por exemplo, não percebo porque é que alguns "papagaios" andam constemente nas televisões a falar demais, e a dizer asneiras, e podem continuar a exercer a profissão. Estou-me agora a lembrar de um papagaio em especial, que já deve ter emitido opinião sobre tudo o que vem a público, e logo, já não pode passar por isento e objectivo em nada. E no entanto permanece...
Hannibal Lecter , 08 Março 2015 - 17:09:58 hr.
Vamos testar esta teoria
Então e se uma magistrado usar uma rede social para tecer comentários racistas? Não será legítimo a um advogado que represente uma pessoa de outra etnia que ataque a imparcialidade do magistrado? E se um dos juízes que tão livremente se expressam vier a integrar o colectivo que julgará um eventual processo do ex-PM? Resumindo: não se exige que os magistrados sejam semi-deuses, escusam é de se comportar como adolescentes com acesso à internet.
Pedro Silva , 08 Março 2015 - 23:40:23 hr.
...
Oh meus amigos, companheiros e camaradas, :é óbvio que andar no facebook é uma infantilidade. andar no facebook a comentar processos e arguidos é uma imprudência e uma asneira, para não lhe chamar outra coisa. quem quer protagonismo não vem para a magistratura.mas de fcato há para aí alguns cromos que gostam de se evidenciar nem que seja pela negativa. os comentários sobre processos pendentes e arguidos neles devem dar origem a processos disciplinares.
antunes de penafiel , 09 Março 2015 - 09:50:22 hr.
...
Concordo na íntegra com o que disse o Hannibal Lecter, nomeadamente com o "tão ingénuos", digo eu, "tão tenrinhos"! Quanto ao resto, sou da opinião, talvez errada, que os santos estão nos altares das igrejas e das capelas.
Rock , 09 Março 2015 - 20:07:29 hr.
...
Quando é que o CSM corre com esse juiz "papagaio" que opina sobre tudo?
Alcides , 09 Março 2015 - 22:46:19 hr.
...
Acabei de receber no meu e-mail algumas transcrições dos doutos comentários, que pelos vistos, a acreditar no teor do e-mail, constam da revista VIP. Vejamos, um deles (LOL):

“As brincadeiras várias que se comentaram por aí sobre o cachecol e o 44 saíram dos grupos como? Desconheço como saíram. Mas sei que devia haver contenção. Por cautela. Porque não somos iguais aos outros. Porque se isto corre mal, vai correr muito mal. Porque não é preciso. Quanto à divulgação envergonha quem o fez. Porque quem o fez não está bem com os comentários, Deveria abandonar o grupo. Porque quem que tenha divulgado, obviamente está incomodado, deve sair, ouviste bufo, isto é para ti. Vai-te embora. Já. Pira-te enquanto é tempo! Não vamos demorar muito a apanhar-te! E se fores colega… tanto pior”; “daqui a bocado passa na televisão que as juízas são depravadas e gostam de chibatadas; a ‘toupeira’ é alguém do grupo, treinado para trair em quem eles, em quem eles se habituaram a confiar”.

Estes comentários vêm-me dar razão, sempre disse aos arguidos para não serem delatores que o MP não gosta de bufos, despreza-os, na verdadeira essência da palavra, “nada de colaboracionismos com essa rapaziada”. Relativamente aos infiltrados ("toupeiras"), também não caiem nas boas graças dos senhores “Precuradores”. LOL
Jack - O infiltrado , 10 Março 2015 - 00:15:50 hr.
...
São pessoas? São os proprios a considerar-se acima dos "humanos"
Atento , 11 Março 2015 - 17:33:21 hr.
uso e porte de arma
Boa noite,
Antes de mais, quero felicitar a revista In Verbis pelo conteúdo.
Num dos prints que encontrei na net, li este comentário: "Por estas e por outras é que tenho licença de uso e porte...". Ora, na Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, o artº 5 refere o seguinte: "A aquisição, a detenção, o uso e o porte de armas da classe B são autorizados ao Presidente da República, ao Presidente da Assembleia da República, aos deputados, aos membros do Governo, aos representantes da República, aos deputados regionais, aos membros dos Governos Regionais, aos membros do Conselho de Estado, aos governadores civis, aos magistrados judiciais, aos magistrados do Ministério Público e ao Provedor de Justiça", ou seja, o print em questão, como todos os outros, formam redigidos por "falsos magistrados". Enfim, este país à beira mar plantado não muda mesmo.
Futura jurista , 11 Março 2015 - 23:14:53 hr. | url
...
Futura jurista, que brilhante conclusão!!! O post em causa, na minha modesta opinião, transmite-nos a ideia, independentemente de ser verdadeiro ou não, que o magistrado (pode ser ou pode não ser) apesar de ter uso e porte de arma (não importa ao abrigo de que legislação) não pode ter arma consigo porque em dias (de revolta) como estes, sabe-se lá o que faria!

Olhe senhora futura jurista (ainda tão tenrinha, na minha opinião, tal como os hipotéticos utilizadores do face em causa), eu tenho uso e porte de arma de qualquer natureza até falecer (excepto se algum tribunal mo retirar) e quantas e quantas vezes, a título de brincadeira (na roda de amigos) já disse o mesmo que o hipotético magistrado disse, e o significado que lhe quero dar é o mesmo que supra referi, no entanto, armado [seja com arma seja em parvo] nunca me passou pela cabeça tal coisa.
Rock , 12 Março 2015 - 10:22:34 hr.
...
Exmo. Senhor Doutor Einstein Rock,

Grata pelos seus elogios. Deduzo também que, para além de ser um excelente jurista e nada ter de tenrinho, também tem uns dotes excelentes no campo da vidência, uma vez que tira conclusões tão acertadas sobre pessoas que não conhece!
Futura Jurista , 16 Março 2015 - 13:22:06 hr.

Escreva o seu comentário

reduzir | aumentar

busy

Últimos conteúdos

Com o termo do ano de 2015, cessaram as publicações de conteúdos nesta Revista Digital de 2015.Para aceder aos conteúdos...

Relatório de gestão da comarca de Lisboa revela falta de dinheiro para impressoras, papel higiénico, envelopes e lâmpada...

Mudança ignorou dúvidas de constitucionalidade levantadas pelos dois conselhos superiores dos tribunais, pela Associação...

Portugal assinala 30 anos de integração europeia a 1 de Janeiro, e três décadas depois de ter aderido à então Comunidade...

Últimos comentários

Opinião Artigos de Opinião Os magistrados são pessoas

© InVerbis | Revista Digital | 2015.

Arquivos

• Arquivos 2012 | 2013 |2014 |
Arquivo 2007-2011
Blog Verbo Jurídico
(findo)

Sítios do Portal Verbo Jurídico