Pedro Adão e Silva - Pior que isso só mesmo a sensação com que se fica de que a justiça, em Portugal, só chega aos poderosos quando estes já perderam a sua influência social ou o seu poder político.
Em "As Origens do Totalitarismo", Hannah Arendt defendia que o antissemitismo tinha atingido o seu clímax no momento em que os judeus tinham já perdido as suas funções públicas e, acima de tudo, a sua influência e haviam ficado apenas com bens materiais. Para acrescentar que, sem poder político e sem influência social, a riqueza que ainda detinham rapidamente tornou o povo judeu alvo de todos os ressentimentos e vítima de violência. O argumento de Arendt, mesmo que tenha surgido para explicar o holocausto, é, no essencial, uma leitura sobre a forma como se organiza o poder nas nossas sociedades.
Lembrei-me da explicação de Arendt porque é uma boa leitura para a relação esquizofrénica da justiça portuguesa com o poder. O episódio esta semana da detenção de Ricardo Salgado, ou antes a prisão de Vale e Azevedo, logo após ter deixado de presidir ao Benfica, ou, mais recentemente, o caso de um ex-ministro e ex-autarca, Isaltino Morais, condenado por, convém não esquecer, "evasão fiscal" e que partilhou uma cela com um homicida (sic), são a este propósito exemplares.
Uma coisa são as considerações subjetivas que possamos fazer sobre a culpabilidade de alguém, outra, diferente, é a justiça seguir um curso que não é determinado, apenas e só, pela lei e limitado pelos direitos, liberdades e garantias, mas que se move pela oportunidade e por aquilo que é popular. Pior que isso só mesmo a sensação com que se fica de que a justiça, em Portugal, só chega aos poderosos quando estes já perderam a sua influência social ou o seu poder político. Temos já casos suficientes que nos permitem dizer que a justiça portuguesa bem podia adotar como lema a expressão inglesa, kick them when they fall down. É o que sugere a detenção de Ricardo Salgado, que permite um corolário: em Portugal, se estiveres escudado no poder a justiça não te chega, mas caso o teu poder se comece a diluir, ela ferra-te o dente, à primeira oportunidade, e fá-lo com prepotência.
Repare-se, Ricardo Salgado foi avisado de véspera que iria ser ouvido por um juiz em relação a matéria sobre a qual já tinha sido inquirido no passado. Ofereceu-se para se deslocar pelos próprios meios ao Tribunal, mas o Ministério Público fez questão de o ir buscar a casa, em Cascais. Eis a justiça portuguesa em todo o seu esplendor.
Este padrão de funcionamento do nosso sistema de justiça tem demasiados efeitos perversos. Ao mesmo tempo que reforça o sentimento de impunidade dos poderosos, cria um quadro de arbitrariedade em relação a alguém que se vê a contas com a justiça, no momento em que começou a perder o poder que antes detinha.
Pior do que tudo, fica-se com a certeza de que a lei não é cega, mas move-se por ressentimento social e oportunidade popular. Uma justiça de pelourinho.
Pode alguém sentir-se livre num país com um sistema judicial destes?
Pedro Adão e Silva | Expresso | 26-07-2014
Comentários (9)
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O que acontece é que a justiça actua de modo visivel quando há provas, indícios bastantes, e para que estes se revelem é essencial que as comadres se zanguem.
Geralmente quando os chamados "poderosos" estão na ribalta ninguém diz nada e está tudo calado (como ratos) e, por conseguinte, o Ministério Público e Polícias nada podem fazer.
Portanto o problema não está nas magistraturas nem no sistema de justiça (que vive da prova directa e indirecta) mas sim na podridão que circula há volta do mesmo.
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Ora, aí está, afinal a culpa de tudo isto é da Justiça!
Diz-se no texto: «em Portugal, se estiveres escudado no poder a justiça não te chega, mas caso o teu poder se comece a diluir, ela ferra-te o dente, à primeira oportunidade...».
Até concordo, mas por que será?
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Óbviamente para todos Sr. Hilário ...
Claro que quando os chefes são corruptos ninguém lhes toca! Só quando caem... e deixam de ser chefes!
Mas muito rapidamente se acusa o porteiro ou a mulher da limpeza...