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REVISTA DE 2014

Uma justiça de pelourinho

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Pedro Adão e Silva - Pior que isso só mesmo a sensação com que se fica de que a justiça, em Portugal, só chega aos poderosos quando estes já perderam a sua influência social ou o seu poder político.

Em "As Origens do Totalitarismo", Hannah Arendt defendia que o antissemitismo tinha atingido o seu clímax no momento em que os judeus tinham já perdido as suas funções públicas e, acima de tudo, a sua influência e haviam ficado apenas com bens materiais. Para acrescentar que, sem poder político e sem influência social, a riqueza que ainda detinham rapidamente tornou o povo judeu alvo de todos os ressentimentos e vítima de violência. O argumento de Arendt, mesmo que tenha surgido para explicar o holocausto, é, no essencial, uma leitura sobre a forma como se organiza o poder nas nossas sociedades.

Lembrei-me da explicação de Arendt porque é uma boa leitura para a relação esquizofrénica da justiça portuguesa com o poder. O episódio esta semana da detenção de Ricardo Salgado, ou antes a prisão de Vale e Azevedo, logo após ter deixado de presidir ao Benfica, ou, mais recentemente, o caso de um ex-ministro e ex-autarca, Isaltino Morais, condenado por, convém não esquecer, "evasão fiscal" e que partilhou uma cela com um homicida (sic), são a este propósito exemplares.

Uma coisa são as considerações subjetivas que possamos fazer sobre a culpabilidade de alguém, outra, diferente, é a justiça seguir um curso que não é determinado, apenas e só, pela lei e limitado pelos direitos, liberdades e garantias, mas que se move pela oportunidade e por aquilo que é popular. Pior que isso só mesmo a sensação com que se fica de que a justiça, em Portugal, só chega aos poderosos quando estes já perderam a sua influência social ou o seu poder político. Temos já casos suficientes que nos permitem dizer que a justiça portuguesa bem podia adotar como lema a expressão inglesa, kick them when they fall down. É o que sugere a detenção de Ricardo Salgado, que permite um corolário: em Portugal, se estiveres escudado no poder a justiça não te chega, mas caso o teu poder se comece a diluir, ela ferra-te o dente, à primeira oportunidade, e fá-lo com prepotência.

Repare-se, Ricardo Salgado foi avisado de véspera que iria ser ouvido por um juiz em relação a matéria sobre a qual já tinha sido inquirido no passado. Ofereceu-se para se deslocar pelos próprios meios ao Tribunal, mas o Ministério Público fez questão de o ir buscar a casa, em Cascais. Eis a justiça portuguesa em todo o seu esplendor.

Este padrão de funcionamento do nosso sistema de justiça tem demasiados efeitos perversos. Ao mesmo tempo que reforça o sentimento de impunidade dos poderosos, cria um quadro de arbitrariedade em relação a alguém que se vê a contas com a justiça, no momento em que começou a perder o poder que antes detinha.

Pior do que tudo, fica-se com a certeza de que a lei não é cega, mas move-se por ressentimento social e oportunidade popular. Uma justiça de pelourinho.

Pode alguém sentir-se livre num país com um sistema judicial destes?

Pedro Adão e Silva | Expresso | 26-07-2014

Comentários (9)


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Mais um jornalista que vive dos donativos da família ESsmilies/cheesy.gifsmilies/cheesy.gifsmilies/cheesy.gifsmilies/cheesy.gifsmilies/cheesy.gif
GES , 27 Julho 2014 - 17:07:42 hr.
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Senhor Pedro Silva é caso para dizer "santa ignorância".
O que acontece é que a justiça actua de modo visivel quando há provas, indícios bastantes, e para que estes se revelem é essencial que as comadres se zanguem.
Geralmente quando os chamados "poderosos" estão na ribalta ninguém diz nada e está tudo calado (como ratos) e, por conseguinte, o Ministério Público e Polícias nada podem fazer.
Portanto o problema não está nas magistraturas nem no sistema de justiça (que vive da prova directa e indirecta) mas sim na podridão que circula há volta do mesmo.
Ai Ai , 27 Julho 2014 - 20:26:18 hr.
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Ora, aí está, afinal a culpa de tudo isto é da Justiça!

Diz-se no texto: «em Portugal, se estiveres escudado no poder a justiça não te chega, mas caso o teu poder se comece a diluir, ela ferra-te o dente, à primeira oportunidade...».

Até concordo, mas por que será?
alberto ruço , 28 Julho 2014 - 11:12:46 hr.
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A detenção de Ricardo Salgado permitiu perceber uma coisa: nas primárias do PS decide-se muito do futuro do país.
Pedro , 29 Julho 2014 - 10:32:14 hr.
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É verdade que muitos poderosos escapam à justiça e que há a sensação de que os que "apanham" tiveram de cair em desgraça prmeiro. Só que, a ser assim, decerto que a culpa não será dos juizes e procuradores que se limitam a fazer o seu trabalho no dia a dia o melhor que podem e sabem...
Zeka Bumba , 30 Julho 2014 - 17:16:06 hr.
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Oh Senhor "Zeka Bumba", esta clado, medite no que afirma e não diga asneiras. Quer-se encontrar pessoalmente um dia comigo, que eu mostro-lhe provas mais que bastantes que Procuradores e Juízes fecham descaradamente quando os visados se tratam de alguém poderoso, de algum Senhor Ilustre ou de algum oficial de justiça? E olhe que já fiz até várias queixas-crime à Polícia Judiciária, mas como esta está dependente do Ministério Público, sabe no que deram até hoje estas queixas-crime? Em nada, absolutamente em nada e algumas até foram já arquivadas, E até hoje, com tantas queixas-crime que efectuei à PJ e devidamente elaborados e até documentadas, nunca nenhum Inspector da Polícia Judiciária veio falar comigo. Mais palavras para quê??
Hilário da Fonseca , 31 Julho 2014 - 10:36:32 hr. | url
Óbviamente para todos Sr. Hilário ...
Também eu enviei documentação oficial (que foi escondida a sete chaves) mas que tal como o gato ficou com o rabo de fora. Foi também essa documentação enviada ao MP que ficou mudo e calado!
Claro que quando os chefes são corruptos ninguém lhes toca! Só quando caem... e deixam de ser chefes!
Mas muito rapidamente se acusa o porteiro ou a mulher da limpeza...
Jakim Á Penas , 31 Julho 2014 - 13:08:11 hr.
...
Meu cargo amigo Joakim À Penas", e posso-lhe dar o exemplo também de um Juíz. Num desses processos de inquérito em que sou queixoso e depois de arquivado o inquérito e de eu ter manifestado no processo a constituição como assistente, veio um Juíz emitir QUATRO DESPACHOS que nem sequer electronicamente estão assinados, qualquer deles, pelo Juiz que os emitiu. O mesmo Juíz pronunciou-se no mesmo processo, sobre assuntos de que não podia tomar conhecimento, dado que não havia o requerimento de abertura de instrução efectuado de acordo com o artº 287º, nº 2, do Código de Processo Penal. O mesmo Juíz no mesmo processo, desprezou por discriminação e menosprezo à minha pessoa, um requerimento que efectuei ao processo, requerendo a substituição do advogado oficioso, por o mesmo ser um dos visados no dito processo.E quando face a este meu requerimento, o prazo deveria ter sido interrompido, o mesmo Juíz deixou-p consciente e indevidamente a correr termos e no dia em que me foi nomeado outro advogado, quando o prazo deveria reiniciar-se, o mesmo Juíz indefere a minha constituição como assistente. E estou a falar de um Juiz e não de um cidadão comum. Moral da história, Comuniquei o caso ao Conselho Superior da Magistratura, para além de continuar sem saber qual o nome do dito Juíz, o CSM diz que está tudo bem e que não existem motivos para instauração de processo disciplinar contra o mencionado Juíz. Por outro lado, se quis reverter s situação quanto ao inderimento da constituição como assistente, tive eu próprio de procurar defender os meus direitos. Isto é apenas um pequeno exemplo, do oceano em que mergulha a vergonha da justiça neste País.
Hilário da Fonseca , 31 Julho 2014 - 15:52:52 hr. | url
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Alhos, bugalhos e afins, assim vai a nossa justiça...
Pé de Vento , 31 Julho 2014 - 17:29:22 hr.

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