Mário Vieira de Carvalho - É o capital financeiro que hoje encarna, mudando apenas de roupagem, o modo de governação do antigo regime: l'état c'est moi. A avaliar pelas últimas eleições, os partidos do governo têm hoje a legitimidade social e política que lhes é conferida por apenas cerca de dez por cento do universo total dos eleitores recenseados. É muito pouco para quem já passou da voz grossa à grosseria. Mas é o suficiente para quem, cada vez mais, demonstra ter uma noção arcaica do Estado e do exercício do poder político.
Dir-se-ia que as declarações delirantes de uma auto-intitulada "professora de direito" sobre a nomeação de juízes do tribunal constitucional, ou de um ex-empresário sobre a necessidade de calibrar o escrutínio dos mesmos, ou ainda a de um eminente economista sobre a sua deles mentalidade de funcionários públicos radicam na conceção de l'état c'est moi, segundo a qual o chefe do executivo personificaria ou deveria personificar todos os poderes do Estado: o legislativo, o executivo e o judicial. Não responderia apenas por um órgão de soberania, antes seria "o" órgão de soberania. Não se encontraria vinculado a uma Constituição, antes a ditaria. Não seria um mero chefe do executivo. Seria o Soberano.
Se, porém, mudarmos de ponto de vista – para uma observação de segunda ordem –, então percebemos que, neste Portugal do século XXI, por via de uma das mais extraordinárias piruetas da história, o soberano não passa, afinal, de um lacaio. Arroga-se uma autoridade absoluta, mas enverga a libré. "Decreta", "proclama", "declara" e "calibra". Mas sempre de libré. Preside. De libré. Discursa. De libré. Participa nos órgãos da União Europeia. De libré. Representa o país. De libré.
Dá-se ares de soberano, mas a libré assenta-lhe na perfeição. Cai-lhe bem nos gestos, no registo grave da voz, no aprumo lento do passo, que fazem da aparente arrogância a mais refinada escola de subserviência. Cai-lhe bem na elegância com que se verga, arremedando poder de decisão. Na diligência com que sabe estender a passadeira, parecendo caminhar sobre ela. Na persuasão a falar e na determinação a agir – em nome de quem verdadeiramente manda. É a libré de chefe de governo: o último grito do pronto a vestir, na União Europeia.
O modelo até parece ter sido talhado em Lisboa, pois não há chefe de governo em que ela assente tão bem. Outros a usam, é certo, mas fica-lhes curta nas mangas. Talvez porque ainda não compreenderam o pleno sentido da "revolução" neoconservadora em curso: a restauração duma ordem feudal, o retorno ao Ancien Régime – a um regime anterior às noções de "soberania popular", "constituição", "separação de poderes", "democracia" e "direitos humanos".
Não se trata, evidentemente, de restaurar monarquias, embora as existentes não estorvem. Nem de alterar a estrutura formal da governação. Nem, portanto, de privar os povos de eleições, parlamentos, governos e constituições. Trata-se, sim, apenas, de subordinar tudo isso à vontade do soberano. Eis o que se pretende com as tão badaladas "reformas estruturais" e "austeridade".
E quem é ele – esse soberano a quem chefes de Estado e de governo devem vergar-se como lacaios? Esse novo senhor absoluto que se apodera do Estado e com ele se confunde? Que legisla, governa, interpreta a seu bel-prazer a constituição e as leis, acaba com a independência dos tribunais, põe e dispõe de todo e qualquer direito, suspende o próprio "Estado de Direito", e degrada os cidadãos à condição de meros súbditos?
É, obviamente, o capital financeiro. É ele que hoje encarna, mudando apenas de roupagem, o modo de governação do antigo regime: l'état c'est moi.
Mário Vieira de Carvalho, Professor catedrático jubilado | Público | 29-06-2014
Comentários (1)
Exibir/Esconder comentários
...
É típico de quem nunca conviveu bem com a autoridade ganhar tiques de tirano quando consegue vir a exercer algum cargo que lhe conceda poder. Temos um historial de PM's que se arroga(va)m de serem grandes democratas ou liberais e que lhe são conhecidas atitudes de confronto com quem se não submeta às suas vontades. Por desgraça nossa, depois são eles submissos perante outros poderes estrangeiros ou pela banca que foi a origem de muitos desvarios e do nosso mal.