Pedro Adão e Silva - A disputa entre o Governo e o Tribunal Constitucional é de natureza tática. Passos Coelho quer instrumentalizar a Constituição
Temo bem que o que está em causa na disputa entre Governo e Tribunal Constitucional seja mais preocupante do que parece. À primeira vista, estamos perante uma divergência política em torno da interpretação da Constituição e, a crer em Passos Coelho da semana passada, sobre a forma de recrutamento e escrutínio dos juizes.
Podemos discordar politicamente, mas são discussões que, em democracia, não só podem como devem ser tidas. Não há, a este propósito, nenhum interdito político.
O problema é que são demasiados os sinais de que o Governo não está a questionar o nosso equilíbrio constitucional porque deseje abrir uma discussão substantiva sobre o tema. O propósito é outro e de natureza tática. Para ultrapassar bloqueios estratégicos que criou a si próprio e, pior, para encontrar um bode expiatório para as suas ações, o Governo não hesita em fazer dos equilíbrios em que assenta o regime — e que estão, como em qualquer democracia liberal, plasmados na Constituição — o ponto focal da disputa política.
A tática faz sentido. Para Passos Coelho, o objetivo nunca foi criar compromissos e alargar a base de apoio à ação do executivo. Pelo contrário, o Governo procurou sempre dividir: primeiro, colocando trabalhadores do privado contra funcionários públicos e jovens a entrar no mercado de trabalho contra pensionistas; agora, na versão absurda desta semana, funcionários públicos com subsídios de férias ainda por pagar contra funcionários públicos com subsídios já pagos.
Esta instrumentalização da Constituição tem, infelizmente, consequências mais vastas e que andarão por aí durante muito tempo.
Para o país, que vê os pontos de compromisso a desagregarem-se, numa altura em que são mais necessários do que nunca. O ressentimento e o revanchismo podem ser instrumentais, mas não apenas dividem portugueses como, no médio prazo, diminuem a capacidade para governar. O Governo já chegou ao médio prazo. Depois do seu fim, vai demorar a recuperar o sentimento de comunidade e, por mais discursos e apelos que sejam feitos, não vai ser fácil construir compromissos em Portugal.
Mas também consequências para o próprio PSD. No meio da volatilidade discursiva, que torna possível que num dia um responsável do Governo diga uma coisa, para logo depois aparecer outro (ou até o mesmo) a dizer o seu contrário, o PSD está a transformar-se. Semana após semana, o que vemos é um partido entrincheirado num último reduto — uma estratégia divisionista, em rutura com o sistema e que usa o ressentimento social como motor político. É triste e vai deixar marcas: a brincar leviana e gratuitamente com a Constituição, o PSD está a transformar-se no Tea Party português.
Pedro Adão e Silva | Expresso | 21-06-2014
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