Paulo de Sá e Cunha - Se Bin Laden tivesse sido capturado vivo deveria ser julgado? E teria direito à defesa?
O artigo de Sílvia Caneco publicado no i em 20/05/2014 com o título "Advogados do diabo. Quanto pesa a consciência na defesa de um criminoso?" transcreve declarações que fiz à sua autora e insere referências à minha pessoa como advogado penalista. O teor global do artigo e a fidedignidade das transcrições não me merecem reparo, pese embora o exagero de ali se ler que "há de tudo" nos casos que patrocinei e que nunca recusaria um patrocínio por razões de consciência. O tema em causa, tratado com ironia mas com acerto, encerra uma questão muito séria: o papel da defesa criminal no plano do Estado de direito.
Pode, para começar, ilustrar-se o problema com uma série de interrogações exemplificativas: se Bin Laden tivesse sido capturado vivo deveria ser julgado? E teria direito à defesa? E os criminosos de guerra nazis? E os genocidas? E os pedófilos? E os incendiários, responsáveis pela destruição de hectares de floresta e pela morte de bombeiros? E os políticos corruptos ou os banqueiros desonestos? A lista é interminável e a resposta da "voz da rua" (pelo menos em alguns casos) não é difícil de adivinhar. A consciência da danosidade social dos crimes, a perfídia dos criminosos, os sentimentos de insegurança da comunidade e de perda das vítimas, catalisados pela crescente mediatização dos casos, tudo se conjuga para o exacerbamento de juízos de repulsa e de intolerância que, mais que justiça, exigem ao poder punitivo do Estado um verdadeiro exercício de vingança colectiva. De forma desvelada, a ideia de retribuir o mal do crime com o mal da pena é ainda largamente prevalecente.
Neste ambiente não é fácil, mesmo às mentes mais esclarecidas, compreender o papel do defensor criminal. Se há crimes hediondos e criminosos infames, o que pensar dos advogados que, sabedores dos males causados, aceitam ainda assim defendê-los? Não raro, também sobre estes últimos recai, aos olhos opinião pública, a marca infamante dos crimes cometidos por aqueles que defendem.
Esta visão das coisas é profundamente errada e atinge um dos pilares civilizacionais hodiernos, universalmente consagrado em todos os catálogos de direitos humanos: o direito de toda a pessoa a um processo penal justo e equitativo. Indissociável deste é a garantia plena dos direitos de defesa, que deverão, na rectidão dos princípios, ser exercidos em juízo através de advogados.
Haverá sempre espaço à objecção de consciência, sendo legítima a recusa do patrocínio quando tal repugne ao advogado. Mas há também o indeclinável dever, que em particular aos penalistas incumbe (e que às ordens de advogados cabe promover), que é assegurar a qualquer pessoa acusada uma defesa condigna. Recordo-me, nos primórdios do caso Casa Pia, de ouvir dizer ao bastonário José Miguel Júdice que, se ninguém defendesse Carlos Silvino, o defenderia ele. É assim que deve ser e assim deverá continuar a ser. Negá-lo seria converter a justiça penal num deplorável simulacro que a ninguém aproveitaria.
Paulo de Sá e Cunha, Jurista | ionline | 28-05-2014
Comentários (1)
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Quanto mais grave for o crime, mais necessário se torna o advogado de defesa, pela seguinte razão: quando alguém faz algo mau ou muito mau, todos ficam contra ele e, nestas condições, muito facilmente se atribuem a um agente acções que não praticou ou praticou noutros moldes e o caminho para a cegueira fica à distância de um passo.
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Além disso, se alguém estiver interessado na verdade, o contraditório é o processo mais eficaz para a alcançar.