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REVISTA DE 2014

A democracia, os mercados e a jurisdição

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António Cluny - Os interesses económicos e financeiros globais pretendem escapar já à contingência das decisões dos tribunais estatais e mesmo às dos tribunais supranacionais e internacionais

1. O processo judicial, instrumento de afirmação, reconhecimento e gestão de regras para atingir a verdade e realizar a justiça, revela mais do nível de desenvolvimento de um povo do que, porventura, muito daquilo a que estamos habituados a chamar, levianamente, "cultura".

Num mundo em que a rápida c global circulação de informação permite a apreensão imediata e, quase sempre, superficial dos monumentos artísticos, científicos e culturais que a humanidade vai produzindo, corremos o risco de tomar como cultura aquilo que não passa de um frívolo patois de salão.

Já a análise da aceitação e vivência concreta das regras jurídicas e jurídico-processuais de um dado país permite-nos tomar o pulso aos valores culturais que uma sociedade verdadeiramente assume como essenciais, em cada momento da sua história.

O século XX ensinou-nos, com efeito, que países e povos reputados como "cultos" - e, inclusive, com uma cultura jurídica avançada - foram capazes, quando prescindiram de tais regras, de cometer os maiores atentados contra os valores da humanidade.

Hoje, fruto de uma leitura pouco ilustrada do processo judicial, tendem muitos actores externos e internos ao direito, a menosprezar a importância das garantias jurídico-processuais para a realização da justiça: a solução socialmente aceitável das contradições e diferendos que a vida em sociedade consente.

Subordinando tudo à neutralidade moral e à dinâmica livre dos mercados, aspiram aqueles actores - influentes no mundo económico e financeiro, mas pouco cultos - a cercear as garantias jurídico-processuais, resultado magnífico de uma apurada evolução da cultura humana.

2. Ao longo dos séculos, sempre a humanidade sentiu a necessidade de entregar a decisão dos conflitos privados e públicos a um fórum com um tempo e um ritual próprios: os tribunais e os seus processos. Quase sempre procuraram os homens erguer um ritual judicial que legitimasse decisões sobre os interesses contraditórios da sociedade.

Nesse ritual, avultam as ideias do estado, que institui o tribunal, e da figura do juiz como entidades terceiras ao conflito: comprometidas com os valores da comunidade, mas assumidamente neutrais ante a discórdia concreta.

3. Hoje, porém, fruto da sua força incontrolada, os interesses económicos e financeiros globais pretendem escapar já à contingência das decisões dos tribunais estatais e, mesmo, às dos tribunais supranacionais e internacionais.

Procuram, portanto, estabelecer formas de resolução de conflitos que não se submetam às regras de direito e de processo aceites pela comunidade política e jurídica.

Procuram, inclusive, submeter os estados a decisões interessadas, tomadas nesses fóruns privativos e inacessíveis, à margem dos tratados institucionais, das leis e da jurisprudência constitucional e humanista dos tribunais nacionais e internacionais.

4. Alguma imprensa estrangeira começou já alertar para as consequências que advêm, neste campo, do Acordo de Parceria Transatlântico (APT), a firmar entre a União Europeia e os EUA. Ali estão previstos mecanismos jurídicos e jurisdicionais autónomos, vinculantes e capazes de condicionar a vontade política e jurídica dos estados e da própria União Europeia

É imprescindível, pois, que os representantes políticos atentem nos riscos que o APT implica para a soberania portuguesa e, inclusive, para a autonomia política e força jurídica das componentes sociais, ecológicas e económicas do Tratado da UE.

António Cluny | ionline | 06-05-2014

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