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REVISTA DE 2014

O mercado da justiça ou a negociação das penas

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António Cluny - A justiça portuguesa já é acusada muitas vezes - demasiadas, infelizmente - de não favorecer a igualdade de tratamento dos cidadãos perante a lei

1. Ultimamente, vai-se ouvindo falar, também entre nós, da possibilidade de o Ministério Público (MP) poder negociar com a defesa as penas criminais na fase de julgamento.

É verdade que estamos habituados a ver - quase sempre em filmes norte-americanos - o MP a negociar os tipos de crimes que hão-de ser sustentados pela acusação e, depois, já em Tribunal, as penas que lhes poderão ser impostas.

O uso de tais expedientes é defendido com base na suposta eficiência e dos custos da justiça.

Esta possibilidade está, porém, relacionada, também, com o próprio modelo de MP de alguns países. Por norma, neles, o MP responde politicamente pela sua actuação: não é independente. Daí a nomeação dos procuradores pelo poder executivo, ou mesmo, como acontece em alguns estados dos EUA. por eleição directa pelos cidadãos.

O poder para tal negociação obriga, pois, a que o procurador seja responsabilizado politicamente pelo seu exercício.

Ao contrário do que sucede nos países que exercem a acção penal justificados apenas na lei e nas imposições que ela determina, os procuradores norte-americanos agem, sobretudo, tendo em atenção critérios e conveniências circunstanciais de política criminal. Mais: não estão obrigados a critérios de objectividade na investigação.

São uma verdadeira parte: uma parte com interesse (político) no desfecho vitorioso do processo.

2. A nossa Constituição estabelece que o MP português exerce a acção penal orientado pelo princípio da legalidade: o mesmo é dizer a obrigatoriedade de esclarecimento de todos os factos que a lei considera crimes e a acusação de todos os seus autores.

Além disso, o MP está obrigado a dirigir as investigações por critérios de objectividade e tem a obrigação estrita de procurar a verdade, mesmo que ela seja favorável ao arguido.

É o que acontece, de resto, na maioria dos países da Europa continental, mesmo quando os respectivos sistemas admitem o recurso, judicialmente controlado, a medidas mitigadas de oportunidade e negociação para pequenas infracções.

O nosso sistema, em casos de pequena monta, faz já, também, algumas concessões a estes métodos, mas apenas num plano de total previsão legal, com o acordo de todos os envolvidos, e mediante o controlo do juiz.

Os princípios constitucionais e estatutários relativos à independência do MP e os princípios processuais que direccionam o exercício da acção penal estão assim intimamente ligados.

Um MP independente (como o português) só pode agir - só está legitimado para agir - dentro de quadros e poderes bem delimitados pela lei e que possam, por isso, ser controlados no âmbito da função judiciária a que pertence.

A única vinculação do MP deve ser, portanto, apenas com a verdade: aí a razão de ser da sua independência.

3. Todos conhecemos o País em que vivemos, os seus valores, a sua tradição constitucional e a sua peculiar cultura política e institucional.

A justiça portuguesa já é acusada muitas vezes - demasiadas, infelizmente - de não favorecer a igualdade de tratamento dos cidadãos perante a lei.

Ousar pensar introduzir factores de negociação das penas - designadamente das penas dos crimes mais graves e que mais afectam a justiça social - é, por isso, no mínimo, temerário.

O problema da eficiência da justiça e do MP não podem ser resolvidos com instrumentos que os desqualifiquem ainda mais aos olhos dos cidadãos. Exigem-se - isso sim - mais diligência, isenção, transparência e verdadeira independência.

António Cluny | ionline | 01-04-2014

Comentários (8)


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Concordo
Pois, mas houve quem no MP "vendeu" o produto, e durante um bom tempo. Foi preciso os jjuízes levantarem problemas e a actual PGR por fim ao "sonho".
Distraído , 01 Abril 2014 - 15:27:19 hr.
...
oh distraído, deve estar mesmo distraído, então nao foi na academia que venderam o produto????
estamos cozidos , 03 Abril 2014 - 13:52:41 hr.
iii
a justiça é toda ela uma mercadoria; veja-se quanto pagam de impostos os mais altos responsáveis da justiça fiscal; consta que alguns, casados com advogados cheios de acções, declaram pouco mais que o salário mínimo e outros ainda se fingem de divorciados para enganar o fisco. E ANDAM a fazer conferencias e a dar aulas (certamente para ensinarem a fugir ao fisco)
kim , 03 Abril 2014 - 17:25:42 hr. | url
...
Não se entende, "justiça" ou aplicação e interpretação das leis, ainda não entendi o que pretendem os craneos, para uns é uma coisa diferente do cidadão comum a justiça , para outros apenas interpretam as leis, e chamam-lhe justiça, não se percebe de facto " todos conhecemos o país em que vivemos " daí o" MP estar vinculado ao dever da verdade que é a razão de ser da sua independência, falta saber a verdade de quem ? decerto que a independência do MP está na letra da lei que é a constituição, há apenas que respeitá-la.
armando , 03 Abril 2014 - 20:31:58 hr.
O texto de António Cluny vai calar alguns que andam por aí
«os procuradores norte-americanos agem, sobretudo, tendo em atenção critérios e conveniências circunstanciais de política criminal»

e tendo em atenção outras coisas de que é melhor não falar.

Imaginem o caso... (sim, esse em que estão a pensar) assente num modelo destes. Hoje toda a gente diria que um dos condenados envolveu os outros só porque teria "negociado" com o MP a acusação contra si. Quantos casos nos EUA não há destes? "Se incriminares fulano, retiramos quase todas as queixas contra ti". (Note-se que não se deve, a partir do que acabo de dizer, inferir qualquer posição minha sobre o caso a que veladamente me referi.)

Se a Justiça em Portugal já é, nalguns casos, suspeita de não funcionar bem - nuns casos, suspeita justificada, noutros, maledicência, ignorância, ou vontade de vender jornais ou as três razões juntas - imaginem o que aconteceria com um sistema de penas ou acusações negociadas.

Há defensores deste sistema de acusações/penas "negociadas" que nunca, nunca, mas nunca tiveram a honestidade intelectual de apontarem os bem conhecidos defeitos que este sistema tem, mas só as suas virtudes (que não nego existirem; mas convém não olhar só para os bonitos olhos de uma pessoa, nao é?).

Por isso é que digo que no meio académico e no judiciário prefiro mil vezes mais uma pessoa pouco inteligente (desde que não muito carregada neste defeito, bem entendido) mas intelectualmente honesta e trabalhadora a uma pessoa genial e de grande capacidade de trabalho mas intelectualmente desonesta. Sendo que ambos cometerão, mais cedo ou mais tarde, erros, o intelectualmente honesto tê-los-á cometido de forma a não os deixar encobertos. Serão, por isso, mais facilmente detectáveis e refutáveis - ou pelos superiores, ou pela comunidade. O intelectualmente desonesto é um tipo de pessoa muito, mas muito mais perigosa (e é só esse defeito que estou a analisar) do que o pouco inteligente ou o pouco trabalhador.

Este (para mim) muito bem-vindo texto do Sr. Magistrado António Cluny deixa-me bastante aliviado quanto a saber que algumas celebridades do mundo da desonestidade intelectual vão, durante algum tempo, andar de boca fechada. Nem tanto por vergonha, mas para não serem muito incomodados.

Se alguns de vós não acreditam que há gente em Portugal a querer ver implantado um processo penal assente na possibilidade das acusações/penas negociadas com o propósito - o exclusivo propósito - de piorar a Justiça nalguns casos muito concretos e típicos, então...

...os meus irónicos parabéns pela lavagem ao cérebro que são capazes de aguentar.
Gabriel Órfão Gonçalves , 05 Abril 2014 - 08:58:29 hr.
Discordo
Pois eu estou em total desacordo com a opinião de António Cluny. E não acho que a «independência» do MP tenha rigorosamente nada a ver com o assunto! Os críticos da justiça penal negociada deveriam ESTUDAR como se administra a justiça penal negociada, por exemplo, em Espanha, na Itália, na Suíça, na Alemanha, na Sérvia, na Holanda... isto só para falar de alguns países da tradição continental. Ou quererão dizer que o MP desses países é menos responsável, menos capaz, menos sério, e menos «independente» que o português?
E quanto a «honestidade»(!) remeto os arautos para a autocrítica e para um maior esforço das meninges. Nada é mais forte que a razão.
Enfim, cada um toma o que quer, como é óbvio... Mas sugiro que se seja sério (isso sim) quando se invocam os argumentos... para que fique tudo na mesma! A posição da PGR (agora secundada por Cluny) é estranhamente conservadora. Os seus protagonistas sempre se reclamaram progressistas... Oh tempos.. oh mores!
O futuro está aí e quem lhe quiser fechar os olhos... quando os abrir dará conta que ficou para trás!
J. F. Moreira das Neves , 06 Abril 2014 - 20:31:20 hr.
...
Exmo. Senhor J. F. Moreira das Neves:

Para evitar melindres, quer no meu próprio interesse, quer no interesse do Sr. Dr. Juiz Moreira das Neves, quer ainda no do bom ambiente deste espaço de cidadania, quero tornar público que nunca li o artigo escrito pelo Sr. Juiz sobre a matéria, artigo esse publicado na Revista do Ministério Público nº 135, com a data de capa de Jul-Set de 2013 (do qual tomei conhecimento após fazer uma pesquisa pelo seu nome. Vísivel aqui: http://rmp.smmp.pt/indice-do-n-135/ ).
De nenhuma forma era o Sr. visado por aquilo que escrevi.

Tenho a maior curiosidade em ler o seu artigo sobre a questão aqui em discussão.

Se me permite, coloco-lhe uma hipótese, e também ao auditório. Pense-se no chamado "caso Casa Pia". Imagine-se que tinha havido negociação de pena entre o MP e o arguido/condenado que mais crimes praticou, tal como dado provado pelo tribunal (todos sabemos quem é a pessoa, e não merece neste contexto uma referência mais explícita).
Que acha que se diria hoje de tal processo? Quantas vozes se ergueriam dizendo que tudo tinha sido combinado entre o MP e o arguido, que teria visto a sua sentença reduzida em troca de declarações incriminatórias para outros, com o que de dúbio essas declarações incriminatórios teriam? Mesmo que o acordo respeitasse todos aqueles pressupostos que o Prof. Figueiredo Dias criou na sua obra sobre a questão! (Maxime a publicidade do acordo, entre muitos outros requeridos pelo Prof. Figueiredo Dias naquela que é já uma obra incontornável sobre a matéria. Vide, a propósito desta monografia, o acórdão do STJ em baixo referido.)

Repare: eu não tenho medo disto. Eu tenho o maior dos medos disto.

Como Juiz que é, de certeza, mas de certeza absoluta que compreende o que quero dizer quando tenho os maiores receios das perversões a que um sistema destes poderá conduzir. Poderá não concordar; mas compreender, compreenderá.

Exmo. Sr. Juiz:
Vou ler o seu artigo com a atenção de que puder ser capaz e esperando nele encontrar o que não encontrei noutros textos escritos por outros sobre esta matéria: uma saída não menos digna do que segura para os meus receios.

Tenho pelo menos o consolo de não estar completamente só nesses receios. Veja-se o que escreveu um autor alemão sobre o assunto, autor esse citado no acórdão de 10-04-2013 do STJ, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Santos Cabral.

Mas acredite: disposto que estou sempre para apreciar novos argumentos, ou mesmo velhos argumentos lidos a uma luz nova que alguém traga, terei o maior interesse em ler o seu artigo, para mais numa questão que, seja qual for o destino que para ela o futuro traga, sabemos ser sempre uma daquelas com que a existência nos veio inquietar.

Com os meus respeitosos cumprimentos,

Gabriel Órfão Gonçalves
09:09
Gabriel Órfão Gonçalves , 07 Abril 2014 - 09:09:28 hr.
...
Que acha que se diria hoje de tal processo? pergunta com sincera preocupação o comentador Gabriel Órfão Gonçalves.
Pois eu, que não tenho posição definitiva sobre a negociação das penas (que já existe no processo sumaríssimo e na suspensão provisória do processo, embora travestida), devolvo-lhe outra questão.
E o que é que à Justiça importa o que se diria de tal processo?
Andamos demasiado preocupados em fazer coisas a pensar no que os outros diriam e com isto esquecemos o essencial: a verdade. E a verdade não é a pena. A verdade são os factos. Pois nesse processo os factos teriam sempre que ser apurados para os que não aceitassem negociar a pena (não os factos).
Rato Mickey , 07 Abril 2014 - 11:21:37 hr.

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