José Reis Santos - A partir do momento em que seres humanos desenvolveram sociedades sedentárias e organizadas que existe uma relação de intimidade com a memória. Em diferentes espaços de cultivo, o intuito sempre foi o de construir identidades partilhadas, fixando em determinado momento e lugar as leituras aglutinadoras de determinadas experiências identitárias, consagrando à eternização social determinados eventos, personagens e/ou mundovisões.
Associadas inicialmente a práticas celebratórias ou ritualísticas, de longo alcance religioso e/ou político, rapidamente os poderes instituídos se aperceberam da capacidade doutrinadora de determinados registos no quotidiano e imaginário colectivo, rapidamente intervindo - directa ou indirectamente - na construção de narrativas e discursos memorialistas, visíveis em expressões gráficas (textos) símbolos físicos (estátuas, edifícios, museus, etc.) ou práticas públicas (celebrações, homenagens, etc). E, como produto de intervenção consciente e doutrinária, a dimensão política apropriou-se do foco memorialista, construindo em camadas sucessivas alguns dos principais traços fundadores das identidades públicas, cunhando nos povos os traços e as origens da sua energia colectiva.
Conscientes deste poder, e consagrando um enquadramento legal superlativo para a questão da memória, os romanos construíram um processo jurídico que, em última instância, poderia condenar alguém à "não-memória". Intitulado Damnatio memoriae, eram punidos a serem apagados da História os que traiam, desonravam ou descreditavam Roma, a sua tradição, imagem ou ideais. Oficialmente, três Imperadores receberam esta sentença: Domiciano, Publius Septimus Geta (expurgado pelo seu irmão, Caracalla) e Maximiano (capturado por Constantino, o Grande), apesar de outras tentativas, como a de Caligula (impedida por Cláudio). E como resultado, não verificado totalmente (pois se o houvera sido não saberíamos de tais eventos), destruíram-se estátuas, rasuram-se moedas e expurgaram-se dos arquivos públicos os registos documentais de tais personagens.
E parece-me neste sentido curioso que, por coincidência política admito, tenha tido apenas a direita governamental portuguesa a responsabilidade de organizar os meta-eventos comemorativos do momento fundador da democracia portuguesa, a origem energética da nossa contemporaneidade. Primeiro Cavaco celebrou os 20, Durão os 30 e agora Passos os 40 anos da Revolução de Abril, sempre utilizando o poder político e os instrumentos ao dispor para procurar intervir na memória construída econsolidada - de tal instante primordial, criticando-o, desvirtuando-o, marketizando-o. E ironicamente questiono se perante tal vontade interventiva no nosso imaginário identitário, não poderíamos recuperar antigos processos legais e a energia democrática consagrada em Abril de 1974 para legalmente sentenciarmos a Damnatio memoriae estes senhores que agora nos governam. Não para que deles nos esqueçamos, porque o que nos fizeram nos últimos anos não se esquece facilmente, mas antes para nunca mais deles nos lembrarmos.
José Reis Santos | Diário Económico | 01-04-2014
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