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REVISTA DE 2014

Despir a farda para sobreviver. Polícias e GNR na clandestinidade

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Associações dizem que há milhares de agentes da PSP e militares da GNR a trabalhar por fora. E às escondidas, porque a lei não permite.

Trabalham às escondidas. São polícias a tempo inteiro, mas nas horas vagas despem a farda e passam a ser mecânicos, taxistas ou operários da construção civil. A GNR e a PSP não os deixam ter actividades paralelas e, além de se desdobrarem para conciliar horários, têm de garantir que não são apanhados. Lourenço faz pelo menos duas directas por semana e conduz um táxi pelas ruas de Lisboa à noite. João trabalha numa oficina de carros e os vizinhos chegaram a ser interrogados por um oficial da GNR que andou desconfiado. Ricardo montou uma firma de pequenas reparações com outro colega da PSP. Os três escondem a identidade com nomes fictícios para poderem contar as suas histórias.

Os sindicatos das duas principais forças de segurança garantem haver mais casos e que o número de polícias com actividades paralelas está a aumentar. Dizem que por culpa dos cortes e dos salários baixos é cada vez mais difícil encontrar polícias a tempo inteiro. Os regulamentos da GNR e da PSP admitem que um agente ou um militar tenham um part-time, desde que a actividade não seja considerada incompatível com as funções policiais e mediante autorização superior. Mas boa parte dos polícias vêem os pedidos negados e muitos nem sequer os fazem, por adivinharem que vão ser negados ou simplesmente por vergonha. Acabam a trabalhar na clandestinidade, sem recibos nem descontos e com medo de serem apanhados.

DE NOITE GUARDA, À TARDE MECÂNICO

Há dias de azar. Uma tarde, um oficial da GNR que o conhecia viu-o na oficina e desconfiou que pudesse andar a trabalhar por fora. Nas semanas seguintes, os vizinhos de João foram interrogados por um homem fardado: sabiam se trabalhava como mecânico? A que horas costumava sair de casa? Quando regressava? Voltava sozinho? Por sorte, conta João, militar da GNR há dez anos, "ninguém abriu a boca". Ainda assim, o susto foi tão grande que deixou de trabalhar na oficina do primo durante quatro meses.

Se fosse apanhado, levaria um processo disciplinar e seria suspenso: "Já estava com problemas de dinheiro e se perdesse dias de vencimento seria bem pior." Há um ano, quando pensava em casar, a vida de João mudou bruscamente. O pai teve dois AVC seguidos e um ataque cardíaco e deixou de poder assistir a mulher, também doente. O filho desmarcou o casamento, largou a casa alugada e foi viver com os pais, que, juntos, recebem 800 euros de reforma. "Depois de o meu pai adoecer passaram a gastar 480 euros em medicamentos", conta.

O ordenado da GNR não chega a mil euros e, aos 32 anos, diz que se viu obrigado a arranjar outro emprego. Quase todos os colegas do posto sabem que trabalha por fora e facilitam-lhe a troca de turnos. Todos os dias, e para ganhar 250 euros, o militar entra ao serviço às 23h e sai às 7h. Às 8h já está a dormir. Acorda às 11h30, almoça e às 14h30 entra ao serviço na oficina até ao fim do dia. O cansaço é "grande", mas o pior de tudo é ter de viver em permanente sobressalto: "Tenho muito medo que entre alguém conhecido pela oficina adentro."

Para evitar o peso na consciência, João pediu três vezes autorização ao comando da GNR para trabalhar. Mas os pedidos foram todos negados por a actividade de mecânico ser considerada "incompatível" com a de polícia. Por ter a "corda na garganta", optou pela clandestinidade e garante que o que faz nas horas vagas não interfere com o trabalho na GNR. "Porque a oficina não está na área do posto onde trabalho e porque não me atraso ou deixo de cumprir com o meu trabalho de militar", explica.

Segundo a lei, toda e qualquer função que um GNR queira desempenhar, mesmo que seja a custo zero, tem de ser previamente autorizada . Até no caso de um guarda querer ser bombeiro voluntário. E a maioria dos pedidos, diz César Nogueira, o presidente da Associação de Profissionais da Guarda (APG), são recusados. "Por isso é que há tantos militares da GNR a trabalhar na clandestinidade", critica.

Admitindo que algumas profissões são incompatíveis com a de polícia - como as que fazem parte dos sectores mais frequentemente fiscalizados -, o dirigente da associação sindical avisa ser preciso repensar o regime de disponibilidade permanente das forças de segurança, "até tendo em conta os cortes que a classe tem sofrido". As regras, defende César Nogueira, não podem ser mudadas a meio do jogo: "Houve cortes e perdas salariais, os polícias recebem menos e têm os mesmos encargos que antes." Por tudo isso, justifica, é natural que agora tenham de procurar alternativas: "Hoje um militar da GNR arrisca a vida, todos os dias, por 700 euros."

DE DIA POLÍCIA, À NOITE TAXISTA

Lourenço tem 45 anos e é taxista em Lisboa há três. Começou a "trabalhar na noite" em 2010, quando houve os primeiros cortes salariais. Na altura perdeu 100 euros e, desde Janeiro, o corte já vai em mais de 250. A mulher, que trabalhava numa fundação, foi despedida há cinco anos e nunca mais voltou a arranjar trabalho. De uma hora para a outra, tornou-se "impossível" pagar os empréstimos da casa e do carro - cerca de 700 euros por mês - e os estudos da filha de 16 anos.

Quatro noites por semana, o agente Lourenço da PSP pega no táxi. Recebe ao dia 5% por cada cliente transportado e sem contrato de trabalho. Não vai à cama pelo menos duas vezes por semana e as folgas são todas aproveitadas para fazer mais dinheiro, com a mulher a filha a reclamarem falta de atenção. O sacrifício é compensado: todos os meses, o agente da PSP consegue tirar entre 600 e 700 euros, fora os 1300 que ganha na polícia. "Só assim consegui nunca faltar a nenhum compromisso e que nunca faltasse nada à minha família", conta.

Lourenço nunca pediu autorização à direcção nacional da PSP para conduzir o táxi. "Sabia à partida que ia ser negada", justifica. Os taxistas estão entre os profissionais mais fiscalizadas pelas polícias e por isso a profissão é incompatível. Em três anos, e apesar de andar clandestino, nunca apanhou nenhum susto, embora já lhe tenham entrado pessoas conhecidas no táxi: "Quando olho pelo retrovisor e percebo que o cliente é conhecido, uso sempre a mesma técnica: olhar em frente e falar o menos possível." Na esquadra muitos colegas sabem do seu part-time, até porque "a maioria" também trabalha por fora. Só na esquadra de Lourenço há um segurança num hotel, dois motoristas de uma família que se revezam entre si e ainda dois polícias que andam nas obras a montar tectos falsos.

Peixoto Rodrigues, do Sindicato Unificado da Polícia (SUP), garante que o número de agentes a trabalhar por fora disparou "para largas centenas" a partir de 2010, quando os impostos começaram a aumentar e os salários a baixar. E explica que muitos polícias não pedem autorização à hierarquia "por vergonha". A clandestinidade tem levado à abertura de processos disciplinares e os agentes, aflitos, procuram ajuda no sindicato. O último caso que chegou ao SUP foi o de uma agente apanhada a conduzir um táxi e cujo processo ainda está a correr. A direcção nacional da PSP diz não ter estatísticas sobre o número de polícias apanhados em actividades paralelas., mas na GNR, e só no ano passado, segundo os números oficiais cedidos pelo comando-geral ao i, foram abertos 14 processos a militares que faziam part-time. Em 2012 foram instaurados outros 14, mais nove que em 2011. E em 2010 registaram-se nove situações, contra apenas quatro em 2009.

DE POLÍCIA A FAZ-TUDO

Há dois anos, quando a mulher ficou desempregada, Ricardo entrou em desespero. Os dois ordenados mal chegavam para pagar as contas e o empréstimo da casa, conta. Meses antes, tinha ouvido dizer que um colega da esquadra, suspenso na sequência de um processo disciplinar, andava a fazer biscates e foi-lhe pedir ajuda. Juntaram-se e montaram uma firma de arranjos domésticos. Dias depois decidiu ir viver com os sogros e pôs o apartamento à venda. "A casa esteve um ano numa imobiliária, mas não apareceram interessados", conta o agente da PSP. Se não fossem os mil euros que ganha por fora, Ricardo, de 40 anos, nunca teria conseguido pagar as mensalidades ao banco. Sobretudo desde Janeiro: "Perdi quase 400 euros no vencimento."

Em dois anos nunca foi apanhado, mas admite pensar nessa possibilidade todos os dias. Para evitar problemas, não trabalha na área da esquadra nem faz trabalhos para conhecidos. Conhece pelo menos quatro casos de colegas suspensos por trabalharem em part-time, mas pensa que a PSP tenta fechar os olhos ao problema. "Admitir que existe é admitir que os polícias são mal pagos, mas quando aparece um caso demasiado flagrante é punido de forma severa para servir de exemplo."

Na esquadra, Ricardo não é o único a trabalhar por fora: "Tenho colegas que servem em casamentos e fazem segurança em estabelecimentos nocturnos." Quase todos são de fora de Lisboa e escondem das próprias famílias que têm outra actividade. "Têm vergonha de admitir que passam necessidade. Há agentes que a meio do mês já não têm dinheiro para ir para o trabalho."

Rosa Ramos | ionline | 19-04-2014

Comentários (9)


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Ex policia

Quando me inscrevi disseram-me logo que tinha que dizer adeus às folgas, aos feriados ou domingos e muitas das vezes ficar sem saber a duração dos turnos de serviço. E adeus ao cabelo comprido.Foi assim a partir de 1978, quando entrei na escola de alistados em Santarém. Fui dos primeiros do curso e até recebi um dicionário como prova. Cheguei a Lisboa e mandaram-me escolher a Esquadra para onde queria trabalhar. Escolhi Campo de Ourique. Se não me engano o vencimento era de 10 contos. Nas primeiras noites dormi na Divisão da PSP no Calvário. Com a rotatividade de turnos, custou-me a habituar ao movimento de entradas e saídas na camarata. Achei que não podia continuar a morar na camarata. Procurei quarto. E não é que me pediram 5 contos por um? Acabei por encontrar um mais barato, mas não mais cómodo, mas sempre era melhor do que dormir em camaratas. Depois e para agonia do vencimento, lá teria que ser feito uns gratificados para melhorar o erário. Saía do lombo. Mas tinha que ser. A vida sempre foi dura e muitas das vezes saia-se de turno e imediatamente seguia-se para uma manifestação, para um terminal. Um vez aconteceu que só ao fim de quatro dias é que senti o calor da cama. Mas foi a profissão que escolhi e teria que me abituar, ou então sair escolher outra - era o lema. Em 1978 ainda se sentia o calor da revolução e tudo neste país era doutor, mesmo aqueles que não conheciam as cadeiras da escola. Veio a possibilidade de concorrer ao posto imediato da PSP. Não fui admitido porque me apanharam com o jornal do " Avante" debaixo do braço. Alberto Torres, um dia vira-se para mim e diz-me - olha que estes g**os não gostam muito de ver esse jornal, Ora, não tenho nem nunca tive cor partidária-mas foi a primeira machadada de incompatibilidades. No ano imediato tento novamente a sorte. Aqui já me aceitaram ir a concurso-mas impediram-me de frequentar o curso. Achei que a PSP não me merecia e nem o primeiro na classificação literária na escola, seriam fundamentais. Sai-o da instituição e leio e oiço estas barbáries destes elementos policiais, ao qual questiono: - Mas estes senhores quando escolheram vestir uma farda foram às escuras? Queixam-se do vencimento, das fardas, dos horários de trabalho, etc. ?!... Eu fui militar. Também fui policia, mas andei sempre no paralelo quando havia rendições de uma dezena de agentes. Hoje entra-se numa Esquadra e não há proteção. Muitos dos chamados policias já não vestem uma farda à anos, têm vencimento superior à média da AP e quando se aposentam ganham o dobro da maioria dos AP. Quantos pedreiros, mecânicos, eletricistas a operar nas Câmaras Municipais vão para a reforma com a média de 1500€? Consulte-se o DR, mensalmente e digam-me se não é verdade, onde elementos da GNR e PSP se aposentam, muitos sempre agarrados à cadeiras e não ao perigo da segurança pública.
Hoje se me quiser aposentar, ex militar, professor,policia e AP, com formação superior e com 40 anos de descontos e 59 anos de idade, ganhando 1200€ por mês, querem aposentar-me por 517€.
Quando os GNR dizem não ter horário de trabalho e os PSP dizerem que ganham mal, afinal com a qualidade de trabalho e no ambiente populacional da AP, até nem ganham mal.
Ribas , 22 Abril 2014 - 09:06:00 hr.
...
Humm... estou desconfiado desta notícia.
Certamente um ou outro procedem desta maneira (em especial em meio urbano) mas com muito cuidado pois na actividade de polícia tudo se sabe e rápidamente.
Ai Ai , 22 Abril 2014 - 15:22:56 hr.
...
Professor e escreve tão mal, Sr. Ribas?
Provavelmente os 517 euros são excessivos, não dignifica a classe dos militares, professores, polícias e outras gentes com cursos superiores ou não.
Olhe, só pelos erros ortográficos, retirava-lhe já 30%.
As condições precárias que teve, não as deve desejar para os outros. Soa-me um bocado a inveja e complexo de inferioridade.
Poeta , 22 Abril 2014 - 16:07:43 hr.
...
Mesmo assim ainda ficocom 70% - o que é positivo. O que são erros ortográficos no texto, pode explicar-me? Oh Senhor Poeta

Não há inveja. Havia segurança`aos cidadãos o que hoje não há. Havia em cada esquina um policia ao qual o cidadão poderia dirigir-se, hoje escondem-se porque não têm amor à farda. Fogem ao trabalho e deixam os cidadãos de mãos a abanar.
Ribas , 24 Abril 2014 - 11:29:33 hr.
O senhor professor Ribas, teceu um comentário sobre esses profissionais muito preconceituoso
Em consideração aos comentários que escrevem de animo leve e isentos de veracidade, devo dizer que a vida dos operacionais das forças de segurança, e quando digo operacionais estou a referir obviamente aos que produzem trabalho, e andam dia e noite em turnos de serviço íngremes, nas ruas da nossa urbe ou zonas rurais, a sua vida é bastante íngreme incompreendida pela população em geral, quer por falta de cultura cívica, quer por inexistência de valores e principos éticos e morais, que infelizmente cada vez mais se solidificam na sociedade, os operacionais vivem no meio do conflito ao qual ocorrem prontamente, tem tarefas que o povo critica como a fiscalização da lei do código da estrada, lei essa, que existe para o bem de todos, porque caso contrario era o caos generalizado, onde os infractores imperariam, e os riscos de acidentes e atropelos as normas de segurança rodoviária, seriam desgraçadamente tremendos! para todos nos, eles vivem em condições muitas vezes degradantes, e algumas vezes, raras, mas que de longe a longe são noticiadas nos jornais, são assassinados, agredidos, ameaçados injuriados, sofrem acidentes profissionais, e segundo nos lemos nos meios de comunicação social, tem um elevado numero de suicídios nas suas fileiras, ainda correm o risco de e segundo, estudos científicos, viverem menos 11 anos, derivado a profissão, entre muitos outras adversidades, pelas quais, passam e ultrapassam, é óbvio que não podemos generalizar e só me estou a basear unicamente em casos noticiosos antigos, mas por tudo isto, considero que o senhor professor Ribas teceu um comentário sobre esses profissionais muito preconceituoso, depreciativo a rondar a inveja, e muito semelhante ao racismo ao marginalizar um grupo de pessoas, dessa forma mesquinha parcial e fóbica.
Pela Justiça , 11 Maio 2014 - 14:41:23 hr.
Critica mal formada do professor
O professor Ribas tem uma forma de analisar a realidade muito irreal e isenta de grau cultural compatível com a profissão que ocupa
Catedratico , 11 Maio 2014 - 15:27:02 hr.
Este professor de trazer por casa, ve-se k é mesquinho, invejoso e sem realidade!! disse!!
Este professor Ribas de trazer por casa, ve-se k é mesquinho, invejoso e sem noção da realidade atual!! disse!! Eu fui dos k entrei na Policia em 1990 e sabia bem o k teria em direitos e deveres policiais!! So k praticamente todos os direitos k disseram k teria e tive, foram-me retirados!!
toyazevedo , 13 Julho 2014 - 20:03:45 hr. | url
Um bem haja à Forças de Segurança!
É triste saber qua as Polícias estão tão mal pagas. Não é o fazerem um biscate que deve dar motivo de processos disciplinares. Quem está a trabalhar não anda a roubar. Faz pela vida com honestidade. Pergundo eu como é que há ministros com bons ordenados e mordomias à frente de empresas e não só? Como pode um cidadão honesto sobreviver com ordenados de miséria? Sou acérrima defensora das diversas polícias e debato-me sempre a favor dos mesmos mas há gente que não é gente e são esses que fazem com que o país esteja em declínio. Força camaradas do infortúnio! Acreditem que ainda há muitos cidadãos que estão do vosso lado. Asssim como o bem não dura sempre, também o mal não dura. Tenhamos esperança, já que é a última a morrer...
Ana Paula Horta , 14 Julho 2014 - 13:57:36 hr. | url
Força POLICIAS
As vezes questiono-me se os portugueses merecem as Polícias que têm... Fazem com NADA o que outros não conseguem com muito...
Mais um... , 02 Agosto 2014 - 21:36:39 hr.

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