No dia em que começaram as férias judiciais, centenas de funcionários e oficiais de Justiça de todo o país desdobravam para uma última leitura um guião que tinham recebido do Ministério da Justiça. As instruções explicam com detalhe como devem ser embalados, arrumados e encaixotados os milhares de processos em papel que terão de ser transferidos de uns tribunais para os outros durante a reforma do mapa judiciário que decorre há dois anos e começa, efetivamente, na reabertura do ano judicial.
Em setembro, quando os tribunais reabrirem, terão sido transferidos 790 mil processos em papel, cerca de um quarto do total — três milhões estão digitalizados e já estão a ser migrados eletronicamente.
De acordo com o Ministério da Justiça, a transferência dos documentos em papel vai começar "na última semana de julho" e será feita, na maior parte dos casos, pela PSP e pela GNR; e também pelas autarquias e pelo Exército, tudo "sem qualquer custo" para o Estado.
"Só em algum caso pontual se poderá recorrer a alguma empresa privada de transportes, o que ainda não foi equacionado", explica o gabinete da ministra Paula Teixeira da Cruz. "O problema", explica Fernando Jorge, do sindicato dos funcionários judiciais, "é que todo o trabalho tem de ser feito por nós e neste momento há 1900 funcionários a menos e por isso tenho muitas dúvidas de que o processo esteja concluído a 1 de setembro, quando tudo tiver de estar a funcionar".
É que, continua o sindicalista, "não são só os processos dos tribunais que vão ser fechados que têm de ser transferidos; com a nova reorganização judiciária, os processos têm de ser todos numerados e mudados mesmo dentro do mesmo tribunal".
A reforma do mapa judiciário, que teve e continua a ter a oposição da Ordem dos Advogados e dos autarcas das localidades onde os tribunais vão fechar ou ser desqualificados, é uma das bandeiras do atual Governo e foi finalmente aceite pelas associações que representam os magistrados judiciais e do Ministério Público. "O novo mapa tem defeitos e virtudes, mas não terá qualquer efeito positivo enquanto não for resolvida a questão da falta de funcionários que é neste momento o principal problema da Justiça portuguesa e que vai ser evidenciado pelo novo mapa", garante Rui Cardoso, presidente do sindicato dos magistrados do Ministério Público. "Não adianta tomar decisões no tempo certo se não houver funcionários para cumprir os despachos", acrescenta Maria José Costeira, do sindicato dos juizes, que recebeu a missão de acompanhar passo a passo a reforma.
"Não sou eu que o digo, é o Governo. De acordo com este novo mapa, mesmo com menos tribunais, continuam a faltar um mínimo de 900 funcionários", insiste Fernando Jorge. "De há dez anos para cá, só sai gente e não entrou ninguém." Em resposta enviada por escrito, o Ministério da Justiça garante estar "à espera de autorização do Ministério das Finanças para abertura de concurso" para admissão de novos funcionários, mas não aponta a data.
7,8 milhões no sistema informático
A migração digital já começou e até ao final desta semana já tinham sido transferidos 800 mil processos. Rui Cardoso, procurador em Lisboa, lembra que na última reforma judicial, em 2005, "houve um crash generalizado do sistema informático"que impediu o acesso aos processos durante vários dias. Este ano, o Ministério da Justiça fez um acordo com a Portugal Telecom, que custou 7,8 milhões de euros para um período de cinco anos, e que permitiu equipar todos os tribunais com cabos de fibra ótica. A rede de comunicações da Justiça foi instalada em 760 locais e abrange todos os tribunais, prisões e a Polícia Judiciária. "E pouco provável que haja um crash semelhante", espera Rui Cardoso.
A hora e meia de carro do Porto, no Tribunal de Resende, um dos 20 que vão fechar definitivamente (há mais 27 que passam a secção de proximidade e deixam praticamente de fazer julgamentos), o trabalho de arrumação e embalagem dos processos já começou. Os dois funcionários presentes no dia desta semana em que o Expresso fotografou as instalações judiciais passam grande parte do tempo a inserir os processos no sistema informático; e o juiz-presidente do tribunal divide os dias de trabalho entre Resende e Cinfães.
Quando o Governo anunciou que o tribunal ia fechar, cerca de 300 de pessoas manifestaram-se em frente ao edifício onde está uma estátua de um dos filhos ilustres da terra: Egas Moniz, o aio de D. Afonso Henriques, que se entregou ao rei espanhol com uma corda ao pescoço por não conseguir impedir a rebeldia do primeiro rei de Portugal. Num dos últimos julgamentos com algum impacto, um agricultor local foi condenado a 15 anos de cadeia por ter assassinado a tiro o próprio irmão. Matou por ciúmes.
Rui Gustavo | Expresso | 19-07-2014
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