Membro do colectivo discorda da tese de que até 2002 os arguidos não sabiam de quem eram as offshores porque confiavam nos seus subordinados
Uma das três juízas que julgou o caso BCP entendeu que o tribunal deveria ter tido mão mais pesada sobre Jardim Gonçalves, antigo presidente do banco, e os antigos administradores condenados no início de Maio a penas de prisão suspensas por manipulação de mercado. Isto porque, entende a juíza Helena Susano, ter ficado provado que os arguidos tinham conhecimento dos factos antes de 2002. Num acórdão carregado de ironias, a magistrada que votou vencida - por considerar que todos os arguidos, incluindo Christopher de Beck, que foi absolvido de ambos os crimes, deveriam ter sido condenados por manipulação de mercado e falsificação de documentos - diz ser "absolutamente inaceitável" e "inverosímil" que os ex-administradores não tivessem conhecimento dos beneficiários das 17 offshores e dos empréstimos que lhes foram sendo concedidos. Mais inverosímil ainda, afirmou, seria a tese de que os homens de topo fossem aprovando todos os passos com base na confiança nos "soldados rasos" da instituição, isto é, nos funcionários dos escalões inferiores.
"O conhecimento da vida e da forma de funcionamento das instituições bancárias nega-me que exista um banco que financie milhões de euros e só o 'homem do balcão' ou, no máximo, o seu superior, saiba a identidade do mesmo, ainda que me situe nos anos idos de 1999 a 2002", afirma a juíza Helena Susano, acrescentando que, a ser assim, eram os funcionários no fundo da linha hierárquica os verdadeiros responsáveis pelos empréstimos que o banco fazia e "a única qualidade profissional" que se exigia aos administradores e quadros superiores era a "enorme capacidade de confiar no trabalho dos seus subordinados".
No longo voto de vencida que consta do acórdão a que o i teve acesso, a juíza vai ainda mais longe e deixa nas entrelinhas uma crítica ao entendimento dos outros membros do colectivo: era necessário ser ingénuo para acreditar que o antigo presidente do BCP, Jardim Gonçalves, e os ex-administradores que foram julgados autorizaram empréstimos que chegaram perto dos 600 milhões de euros "mesmo sem saber a identidade e a capacidade financeira da empresa financiada".
"É, a meu ver, de uma ingenuidade que não me veste, aceitar a versão dos arguidos que autorizaram as concessões de crédito nestes montantes de centenas de milhões de euros, sem jamais perguntar e saber a quem." Ainda para mais, acrescenta a magistrada, quando estes empréstimos serviram para comprar quase 5% do capital do banco e essa percentagem dava direito de voto nas assembleias gerais. Algo que beneficiaria "os arguidos, que eram administradores a eleger nessas assembleias".
Jardim Gonçalves e os ex-administradores Filipe Pinhal, António Rodrigues e Christopher de Beck alegaram em julgamento que só em 2002, quando interpelados pelo Banco de Portugal, foram saber quem eram os beneficiários das 17 offshores nas ilhas Caimão. Até essa data, disseram, terão confiado cegamente nos funcionários. Essa teoria convenceu dois dos membros do colectivo - os juízes Anabela Morais e Pedro Lucas - mas não teve "nenhuma credibilidade" para a magistrada Helena Susano, que lança uma série de interrogações para tentar deitar por terra a tese da confiança nos subordinados: os arguidos "foram aprovando e renovando créditos, sem saber se estavam a negociar com um mafioso?"; "Os escalões inferiores faziam o seu trabalho, analisando a proposta, e essa análise não ficava registada em nenhum documento?"; "Mas em que banco, em que empresa, onde é que uma intervenção volátil assim existe?"; "Mas o BCP não era deste mundo empresarial e financeiro?"
Além disso, acrescentou a juíza, esta teoria não só contrariava "a imagem de rigor" que os arguidos foram passando de si próprios em julgamento como, a acreditar na versão de que até ao fim de 2002 desconheciam a existência das offshore e as transacções de títulos BCP, "este seria um bizarro processo de coincidências" que nem sequer desencadeou um "processo de averiguações" ou disciplinar. "Foram obrigatoriamente os arguidos que ao assinarem as propostas concederam efectivamente os créditos (...). E só o fizeram porque sabiam o que estavam a fazer, o que estava subjacente aos financiamentos e qual a sua verdadeira finalidade", concluiu.
FALSIFICAÇÃO O tribunal concluiu que os dois crimes de que o antigo presidente do BCP e os ex-administradores Filipe Pinhal e António Rodrigues eram acusados ficaram provados, mas decidiu absolvê-los da falsificação de documentos. O colectivo de juízes entendeu que a falsificação tinha sido apenas instrumental: era um meio para atingir o objectivo de manipular o mercado. Mas também essa decisão não foi unânime: a juíza que votou vencida concluiu que "não foi com o escopo solitário de manipular o título BCP que as contas foram falsificadas". "Ao invés, através dela foi ocultada, durante vários anos, aos supervisores, uma prática fraudulenta, e obtiveram-se direitos de voto nas Assembleias Gerais."
Os processos pendentes
Processo-crime
O processo cujo acórdão foi conhecido a 2 de Maio começou em Setembro de 2012 e terminou cerca de um ano e meio depois com uma sentença histórica: pela primeira vez, ex-administradores de um banco foram condenados por manipulação de mercado. As partes têm ainda a possibilidade de recorrer.
Contra-ordenações
Este não é o único caso em que a gestão daquela administração está a ser analisada nos tribunais: estão ainda a correr dois processos contraordenacionais – um movido pela Comissão de Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e outro pelo Banco de Portugal (BdP).
Banco de Portugal
No processo movido pelo supervisor bancário por prestação de informação falsa e falsificação de contas, Jardim Gonçalves viu em Março ser declarada prescrita a multa de 1 milhão de euros. O juiz António da Hora concluiu que as nove contra-ordenações imputadas ao banqueiro estavam prescritas desde Março de 2013. A multa de 650 mil euros aplicada ao antigo director Luís Gomes e algumas das aplicadas a outros administradores também tiveram como destino a prescrição. As restantes, contra seis arguidos, também continuam em julgamento.
CMVM
No processo movido pela CMVM, em que sete ex-gestores eram acusados de prestar informações falsas ao mercado, o Tribunal da Relação confirmou em Março a condenação de seis antigos gestores e um director. Algumas das condenações estavam prescritas, o que levou o tribunal a reduzir coimas e prazos de inibições. Os arguidos reclamam agora uma irregularidade, porque a Relação não terá analisado uma reclamação. Enquanto no processo do BdP, Jardim Gonçalves foi afastado de funções durante nove anos, neste caso da CMVM a inibição foi reduzida para dois anos e meio.
Sílvia Caneco | ionline | 12-05-2014
Comentários (13)
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Os poderosos sempre na crista da onda!!!
Posso, pelo menos, escrever: como é que querem que o povo português acredite nos tribunais?! É cada vez mais descarada a protecção aos poderosos!!!!...
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Com a mesma veemência.
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Por não ser possível entrar no cérebro de alguém e verificar, in loco, se esse alguém teve conhecimento de certos factos pretéritos, isso não implica que seja impossível para terceiros afirmar se A ou B teve ou não teve conhecimento de certos factos passados.
2.
Porém, declarar numa sentença ou acórdão certos factos como «provados», quando isso implica afirmar que alguém teve conhecimento de algo, pode colocar ao juiz, quando este dá o passo seguinte, e coloca em regra, dificuldades ao nível da justificação da respectiva convicção.
3.
Se o juiz não consegue articular um discurso que o convença a si mesmo, tenderá, por certo, a declarar o facto como «não provado».
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Assim sendo, então para que é que o art. 127º do Cód. Proc. Penal se refere às regras da experiência?
Artigo 127.º
Livre apreciação da prova
Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
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Se calhar não estamos tão longe...
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Ao quem já viu...
os contactos, aventais e quejandos são essenciais...na magistratura.
uma vez um inspector do csm, tipicamente português, coisas de inveja e maledicência, queria saber pormenores desta juíza...imagine-se
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Talvez não me tenha expressado bem.
Apenas quis dizer que a exigência de fundamentação implica elaborar um texto escrito com uma argumentação convincente, desde logo para o próprio, utilizando inevitavelmente, claro está, as regras da experiência.
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