Um erro das Finanças. Mais de três dezenas de pareceres, relatórios de quatro comissões. Mas só o parlamento açoriano fez notar que a nova lei impedia os reformados de trabalhar, mesmo que de forma gratuita, para o Estado.
"A proibição do exercício de funções públicas deixa de se restringir apenas às remuneradas." O alerta consta de um documento enviado pela Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores ao parlamento, num parecer à Lei da Convergência, que veio impedir pensionistas e reformados de trabalhar para qualquer entidade pública, mesmo que a título gratuito. Uma omissão, segundo o Ministério das Finanças, que passou por todo o processo legislativo sem que tivesse sido corrigida Mas como se constata no texto chegado dos Açores, alguém deu pela alteração - o problema foi que ninguém deu pelo aviso. Em causa está apenas uma palavra: remuneradas. Até Março, data em que o diploma entrou em vigor, a lei estipulava que "os aposentados não podem exercer funções públicas remuneradas para quaisquer serviços da administração central, regional e autárquica" ou para quaisquer entidades públicas excepçõessó com lei especial ou autorização dos membros do governo responsáveis pelas pastas da Administração Pública ou das Finanças. A nova lei estendeu o impedimento a "reformados, reservistas fora de efectividade e equiparados" e deixou cair a expressão "remuneradas", pelo que a legislação passou a abranger também participações gratuitas. A alteração passou despercebida Foi Bagão Félix quem, há poucas semanas, denunciou a mudança.
NO CENTRO DE TODAS AS ATENÇÕES
Seguindo o processo legislativo é clara a origem da omissão: o diploma, oriundo do Ministério das Finanças, foi aprovado em Conselho de Ministros já sem a expressão "remuneradas". E foi assim que entrou na Assembleia da República, onde o lapso não foi corrigido. E não foi por falta de atenção dentroe fora do Palácio de São Bento - ao diploma.
No período de consulta pública entraram no parlamento 34 contributos individuais e pareceres de várias entidades, sobretudo sindicatos, à proposta de lei - nenhum faz referência à proibição de acumulação, mesmo que pro bono. E nada menos do que quatro comissões parlamentares elaboraram relatórios sobre o diploma do governo, com o pormenor pouco usual de a Comissão de Assuntos Constitucionais ter feito dois relatórios - o primeiro, da autoria da deputada socialista Isabel Moreira, foi chumbado pela maioria (concluía pela inconstitucionalidade da lei), após o que foi elaborado novo parecer, redigido pelo social-democrata Hugo Velosa Também nestes documentos não há referência ao impedimento.
O diploma seguiu do parlamento para Belém, e de Belém para o Tribunal Constitucional - Cavaco Silva pediu a fiscalização preventiva de várias alíneas. Com a análise dos juizes do Palácio Ratton a cingir-se aos pontos visados declaradosinconstitucionais - o diploma voltou para a Presidência e daí para a Assembleia da República. Maioria e partidos da oposição propuseram alterações - o PCP e o Bloco de Esquerda avançaram com a proposta de eliminação de vários artigos, entre os quais o que alterou o Estatuto de Aposentação. PSD e CDS chumbaram.
Em todos os pareceres e relatórios, feitos na Assembleia da República ou enviados aos deputados, há um dado claro: todas as atenções estavam concentradas num ponto específico da lei - o corte médio de 10% nas pensões superiores a 600 euros, já a pagamento, da Caixa Geral de Aposentações (depois chumbado, por unanimidade, pelo Constitucional).
UMA OMISSÃO INADVERTIDA? A lei; como ficou redigida, não é isenta de consequências: quem infringir os impedimentos definidos no novo quadro legal pode ficar com a pensão suspensa. António Rendas, presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) escreveu ao secretário de Estado da tutela a alertar para uma situação que "afecta um número significativo de professores jubilados". "Fomos contactados por várias faculdades a dar conta da intenção de muitos professores deixarem de dar aulas pro bono se esta legislação se mantiver", afirmou ao "Diário de Notícias". Bagão Félix já veio dizer que se afastou do Conselho Geral da Universidade de Évora, onde exercia funções a título gratuito. Octávio Teixeira, ex-líder parlamentar do PCP, pôs um ponto final no espaço de comentário semanal na Antena 1.
Ao í, Octávio Teixeira afirmou, na sequência do anúncio da saída, que apesar de o governo já ter vindo afirmar que ninguém perderá a pensão por trabalhar a título gratuito para o Estado, não aceita uma situação que, na prática, se traz numa "ilegalidade" - "o governo não aplica a lei ele próprio criou". Para o ex-deputado esta é uma "lei estúpida", mas que tem também duas das "marcas ideológicas" do executivo contraos reformados e contra "tudo o que é público". Octávio Teixeira questiona, aliás, se esta terá sido uma omissão inadvertida, dado que "pelo caminho, calam-se algumas vozes incómodas". "O governo decretou a prematura morte social dos reformados", acusou, na despedida da Antenal. Na mesma linha Bagão Félix já tinha dito na SIC Notícias que esta "é uma forma pouco subtil de aplicar uma eutanásia social e profissional aos reformados".
O governo veio entretanto afirmar, através de fonte oficial do Ministério das Finanças, que deverá voltar a alterar a lei no próximo Orçamento do Estado.
CASOS
CÓDIGO DO TRABALHO. MULTAS FICARAM ESQUECIDAS
Foi outro caso de omissão na lei, mas não foi uma palavra - foi uma secção inteira. Em 2009, o Código do Trabalho foi alterado, mas no texto que chegou ao parlamento tinham desaparecido as contra-ordenações a aplicar por irregularidades em matéria de saúde e segurança no trabalho. Ninguém deu pelo erro e a lei foi publicada mesmo assim. O PS, na altura no governo, fez aprovar uma rectificação ao diploma. Mas não travou as consequências: perante o vazio legal os processos que estavam em tribunal foram caindo um após outro: a infracção até podia ficar comprovada, mas não havia coimas a aplicar. O valor das perdas para o Estado nunca foi apurado, mas terá ascendido a muitos milhares de . euros. E a rectificação do PS acabou declarada inconstitucional, considerada como "alteração substancial".
CÓDIGO DO TRABALHO II. DESTA VEZ NÃO HOUVE RECTIFICAÇÃO
Talvez com o exemplo de 2009 em mente, Assunção Esteves respondeu com um rotundo 'não' à pretensão da maioria parlamentar de introduzir rectificações ao Código do Trabalho, no ano passado. Desta vez os papéis inverteram-se: PSD e CDS argumentaram que se tratava de alterações pontuais, a oposição alegava que havia mudanças substantivas, no que foi também a interpretação da líder da AR. Exemplo: a versão final da lei dizia que a indemnização por despedimento se aplica apenas "nos casos em que o contrato de trabalho não tenha atingido a duração de três anos", a 'rectificação' referia "até à data em que o contrato perfaça três anos". A lei diz que "as rectificações são admissíveis exclusivamente para correcção de lapsos gramaticais, ortográficos, de cálculo ou de natureza análoga".
"DE" OU "DA", UMA PREPOSIÇÃO PODE FAZER A DIFERENÇA
A Lei de Limitação dos Mandatos Autárquicos foi aprovada no parlamento e promulgada em Belém dizendo "presidente de câmara municipal", mas foi publicada em "Diário da República" como "presidente da câmara municipal". A mudança da preposição - assumida pela Casa da Imprensa e justificada com regras de revisão - foi mais uma achega na discussão do controverso diploma, que já então dividia opiniões quanto à interpretação do âmbito da limitação de mandatos. Ou seja, se o impedimento se aplicava apenas à câmara onde o autarca tinham cumprido três mandatos consecutivos (tese reforçada pela versão publicada do diploma), ou a todas as câmaras. O caso acabou no Constitucional (com a decisão de que a limitação era apenas para a mesma câmara), com críticas dos juizes à falta de clareza do diploma.
Susete Francisco | ionline | 05-08-2014
Comentários (3)
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O n.º 1 do artigo 78.º do Estatuto da Aposentação tinha esta redacção:
«Os aposentados não podem exercer funções públicas remuneradas para quaisquer serviços da administração central, regional e autárquica, empresas públicas, entidades públicas empresariais, entidades que integram o setor empresarial regional e municipal e demais pessoas coletivas públicas, exceto quando haja lei especial que o permita ou quando, por razões de interesse público excecional, sejam autorizados pelos membros do governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública»
Com a Lei n.º 11/2014, de de 6 de Março, a redacção passou a ser:
«Os aposentados, reformados, reservistas fora de efetividade e equiparados não podem exercer funções públicas para quaisquer serviços da administração central, regional e autárquica, empresas públicas, entidades públicas empresariais, entidades que integram o setor empresarial regional e municipal e demais pessoas coletivas públicas, exceto quando haja lei especial que o permita ou quando, por razões de interesse público excecional, sejam autorizados pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da Administração Pública»
2.
A questão é esta:
Quem está incumbido de alterar leis sabe minimamente o que quer fazer ao alterá-las.
Pelo menos lê o texto antigo e cria um texto novo.
Porventura coloca-os lado a lado.
Sabe que há reformados que continuam a trabalhar, uns recebendo e outros trabalhando gratuitamente.
Então, como se explica que a pessoa ou grupo de pessoas que fez esta lei tenha/tenham suprimido a palavra «REMUNERADAS»?
3.
A resposta mais conforme com as regras da experiência vai no sentido da alteração ter sido propositada e visou, por isso mesmo, atingir determinados fins.
Pelo menos o ónus da prova está do lado de quem pretender mostrar que a alteração foi fortuita.
Se o texto veio do Ministério das Finanças é lá que se encontra o autor da alteração, que pode até ser apenas uma pessoa, pois bastava apagar uma palavra.
Chiça!
A ver se eles não descobrem que eu lavo a louça cá em casa,,,,,
Mas a sério isto até me dá vontade de Mi"jar a rir....
No entanto adoro ler as assinaturas dos RETARDADOS que assinaram tais decretos...
...
Claro que a alteração não se deve a esquecimento ou erro.
Basta pensarmos um pouco.
Não haverá dúvidas de que se quiz impedir que os reformados (aposentados, etc) trabalhassem para o Estado de forma remunerada. Aliás, já antes havia limitações, com obrigação de redução da pensão ou da remneração para desincentivar essa prática. Logo, não é aí que está a questão.
Assim sendo, a omissão visou alargar o universo da proibição.
Num tempo em que o desemprego tem a taxa que tem, quando a regra já é, de há muito, a da proibição das acumulações no Estado, salvo autorizações excepcionais, parece de toda a lógica que também se não permita qualquer exercício de funções no Estado por reformados ou aposenttados.
Dir-se-á que, sendo gratuitas, não haverá prejuízo mas não é necessariamente assim, mesmo com o exemplo que tem sido aduzido dos catedráticos jubilados.
Em primeiro lugar porque ninguém trabalha de borla se não retirar disso algum benefício pessoal: gabinete, comunicações, equipamento e material científico, apoio administrativo, ou seja, uma logística que custa dinheiro e nem sempre se revela útil jpois não terá contrapartida inequivocamente assegurada. Já bastam, para esse peditório, os antigos Presidentes da República.
Em segundo lugar porque, pensando não nos catedráticos mas nos jardineiros e admitindo que algum estaria disposto a trabalhar de borla para o Estado depois de se reformar - em vez de ir jardinar para uma empresa da especialidade - ficara a tirar o emprego a alguém, na hipótese da sua substituição ser mesmo indispensável. O jardineiro é mero exemplo, como o poderia ser um enfermeiro ou um médico.
Não parece difícil alcançar o sentido da alteração.
Nem a quase total irrelevância do problema.
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