Cavaco obriga Tribunal Constitucional a olhar para a Europa: O Presidente quer que os juizes levem o Tratado Orçamental em consideração, na hora de decidirem sobre os cortes salariais
Não há palpites e a partir de agora é a "roleta russa". Foi assim que um constitucionalista colocou o assunto, interrogado sobre a questão de como poderão decidir os juizes do Tribunal Constitucional relativamente aos dois diplomas que há dois dias têm na mesa para fiscalização preventiva: o que rege os cortes salariais e as condições da sua reversão para os próximos quatro anos e o que estabelece uma contribuição de sustentabilidade, uma espécie de "nova CES", a Contribuição Extraordinária de Solidariedade que esta semana o TC validou à tangente.
Tudo está já oleado para que a dupla decisão seja rápida. Na terça-feira, o Governo enviou uma carta ao Presidente da República justificando o pedido, na quarta este recebeu os diplomas e, na quinta à hora de almoço, os respetivos pedidos presidenciais já tinham dado entrada na secretaria do Palácio Ratton. Pouco depois, era o próprio Tribunal a comunicar que se pronunciará a 14 de agosto, a data limite antes das férias judiciais, que impõem uma redução do número de juizes de 13 para sete, escolhidos de forma aleatória.
"O Tribunal, com vista a preservar a possibilidade de uma decisão em composição plena, vê-se forçado a não esgotar o prazo de 25 dias de que constitucionalmente dispõe, não obstante as extremas dificuldades colocadas pela tramitação simultânea de dois processos desta natureza em tão curto espaço de tempo", lê-se no texto do comunicado. Por iniciativa própria, o Tribunal cortou assim a possibilidade real de uma decisão de consequências pesadas para o Governo poder ser tomada por uma maioria de apenas quatro juizes. "Tinha de evitar-se o absurdo dos turnos", dizia um antigo juiz. No ano passado, foi precisamente uma composição de sete juizes que chumbou, em agosto, a chamada lei de requalificação dos funcionários públicos, que abria a porta ao seu despedimento.
Finalmente, ontem, o Governo entregou no TC a nota explicativa que enquadra a sua visão sobre as normas em causa, tal como tem feito em ocasiões anteriores. O ciclo ficou completo. Aos juizes cabe, agora, decidir. E, ao que parece, não será fácil.
A questão central: Europa
Pela primeira vez, o Tribunal vai ser confrontado com uma situação nova: terminado o tão famigerado Programa de Assistência Económica e Financeira (PAEF), vulgo memorando, terá de decidir se ainda cabem argumentos sobre a situação de exceção. "Até agora, foi o PAEF que justificou as medidas transitórias e de excecionalidade, resta saber se no futuro essa transitoriedade poderá justificar-se à luz de outros instrumentos, como o Tratado Orçamental", resumiu ao Expresso o professor catedrático e constitucionalista Carlos Blanco de Morais.
E, se o for, como será? O Tratado estabelece um conjunto de metas e objetivos específicos a que o Estado português se obrigou, mas não diz de que maneira. "A questão nova e fulcral que se põe agora é precisamente essa — é o Governo que tem de decidir como, e a grande incógnita é precisamente como decidirá o Tribunal", dizia por sua vez o constitucionalista Jorge Reis Novais. Certo é que, sublinhava Blanco de Morais, "não havendo regra de prevalência do direito europeu sobre a Constituição, até agora nunca houve choques entre ambos".
A questão é tão central que não é por acaso que o pedido do Presidente refere expressamente a necessidade da decisão judicial contemplar na sua decisão a ponderação não só sobre o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) como o Tratado Orçamental, colocando assim no contexto as obrigações internacionais do Estado.
A nota do Governo
Por sua vez, a nota governamental desenvolve abundantemente o tema. "Usamos argumentos decorrentes da União Europeia", disse ao Expresso fonte governamental. "Tem de haver uma interpretação da Constituição que permita compatibilizar ao máximo as obrigações que Portugal tem no âmbito da UE", adiantou.
Ao que o Expresso apurou, a nota defende que a Constituição se insere numa "constituição económica europeia", pelo que o TC terá de ponderar as questões europeias relevantes.
"Hoje, existem procedimentos de défice excessivo, controlos europeus sobre o Orçamento a que Portugal está sujeito, como os demais membros da zona euro", dizia uma outra fonte do Governo. "Se o TC não atender a isto, coloca um problema de inserção de Portugal no euro."
Mesmo não chegando a tais extremos, a opinião generalizada é que se o Tratado Orçamental vincula o Estado, o TC "pode ser tentado a tê-lo em conta, já que cria uma situação permanente", prevê o socialista Vitalino Canas. Gomes Canotilho não arrisca previsões, mas corrobora que este é o "tema central" na Europa: "Quando há vários direitos e vários ordenamentos e constituições, quem tem o direito de proferir a última palavra?"
Isabel Moreira defende uma opinião contrária: "Havendo uma dimensão política e uma discussão em curso sobre a interpretação do próprio Tratado, este não pode aparecer como o 'fantasma financeiro' da constitucionalidade".
E agora?
Ninguém arrisca previsões sobre como o TC vai decidir sobre os diplomas agora em causa, exceção feita a Isabel Moreira ou Reis Novais, para quem este último acórdão, ao privilegiar o carácter transitório da CES, "anuncia o chumbo da futura contribuição de sustentabilidade", como disse a primeira. Na nota do Governo, explica-se que se procurou responder aos quesitos colocados anteriormente pelos juizes e fazer uma reforma mais abrangente, pondo no mesmo diploma não só a nova fórmula de cálculo das pensões como o aumento do IVA e da TSU dos trabalhadores, normas, aliás, cuja fiscalização Cavaco não pediu. Quanto às reduções salariais, o Governo recuperou os chamados "cortes de Sócrates", aplicáveis a partir dos €1500, ao mesmo tempo que prevê a sua restituição em cinco anos. Mas a decisão vai depender de como o TC decidir a "questão europeia": se, uma vez esgotado o tempo da sujeição ao programa, o tempo da crise se mantém.
Luísa Meireles | Expresso | 02-08-2014
Comentários (1)
Exibir/Esconder comentários
Escreva o seu comentário
< Anterior | Seguinte > |
---|