Quem decide tem de interpretar uma linguagem que não domina, quem tem de dar pareceres pensa: "Hoje é ele, amanhã sou eu." Os advogados já sabem a Hção: ou o caso é grosseiro ou o melhor é saltar para o cível. Uma coisa é provar que houve lesão, outra é provar que houve crime
"Tribunal absolve médicos de homicídio negligente." "Reumatologista absolvido de acusação de homicídio por negligência." 'Tribunal de Coimbra absolve médico e enfermeiro acusados de morte de criança." "Arguidos absolvidos no caso dos cegos de Santa Maria."
Encontrar outros títulos em casos de suspeitas de negligência médica é tão raro que já há advogados que aconselham os clientes a saltar o processo-crime e partir de imediato para uma acção cível. "Numa acção cível tenho de provar menos. Não tenho de fazer prova de que aquele profissional de saúde violou as legis artis. Tenho apenas de provar que alguém estava bem e morreu ou ficou mal devido a um erro ou a um lapso médico que causou danos e aí há pelo menos direito a uma indemnização", explica o advogado João Nabais.
Por que razão é tão difícil provar num processo-crime que alguém morreu ou sofreu uma lesão física devido a um erro médico? Ou os casos são flagrantes, como o de uma tesoura esquecida num abdómen durante uma cirurgia, ou não será fácil reunir prova suficiente que demonstre dolo ou relação directa entre o acto médico e a lesão ou a morte. Ou seja, que é efectivamente um homicídio por negligência ou que foi a falta de cuidado do médico que causou uma lesão ao paciente. Outro problema é conseguir definir quais os cuidados que se devem exigir em determinadas circunstâncias: mesmo que o médico ou o enfermeiro pudessem ter feito mais, será que tais actos eram exigíveis?
Aida dos Santos foi submetida a uma cirurgia plástica ao abdómen em Setembro de 1995. Uns dias depois teve alta hospitalar, apesar de se ter aberto um buraco na cicatriz e de os riscos de infecção, enquanto doente obesa e diabética, serem maiores. Acabou por ser novamente internada, mas só mais de três semanas depois entrou de novo na sala de operações para que lhe fosse feita uma limpeza cirúrgica da ferida. Já sairia ligada ao ventilador. Acabou por morrer a 25 de Novembro de 1995, vítima de uma septicemia, no Hospital da Cruz Vermelha, em Lisboa. A filha Anísia nunca conseguiu que lhe fosse feita uma autópsia para apurar a porta de entrada da bactéria. A espera prolonga-se há 18 anos, tal como o i contou na edição da passada quinta-feira.
Na sentença, datada de 2003, a juíza reconheceu que a alta hospitalar "não significa nem pode significar o abandono do doente à sua sorte" e que, apesar de "a doente se deslocar ao hospital para fazer pensos, o médico cirurgião não curou de a vigiar, apesar de ciente dos riscos pós-operatórios de infecção ou de inflamação" de uma doente que, por ser "obesa e diabética", exigia "cuidados redobrados". Apesar disso, quer o médico assistente quer o cirurgião plástico acabaram absolvidos. A Relação de Lisboa mandou depois repetir a sentença, mas o caso prescreveu na gaveta da juíza.
DE MÉDICO PARA MÉDICO A complexidade destes processos é muitas vezes apontada como razão para se eternizarem ou para acabarem com absolvições. Quem anda pelos tribunais aponta outros motivos: os procuradores e juizes têm de interpretar uma linguagem que não dominam e.as perícias sobre práticas médicas, escritas por clínicas, dificilmente são isentas. "Há muito corporativismo dos médicos. É muito difícil encontrar quem faça um parecer sério ou objectivo. A generalidade dos pareceres refugia-se em questões hipotéticas. O que é normal porque quem o faz pensa: hoje é ele, amanhã posso ser eu", diz ao i João Nabais. Em processos-crime, o advogado lembra-se de conseguir que um médico fosse condenado e a vítima recebesse uma indemnização, à volta dos 40 mil euros, "mas porque era um caso grosseiro": o médico que operara a coluna vertebral de uma doente para introduzir uma espécie de armação metálica para lhe endireitar a coluna ter-se-á esquecido de uma compressa dentro do seu corpo, o que daria origem a uma infecção.
O advogado João Medeiros, também especialista em casos de negligência médica, realça que, "tirando os casos extremamente escandalosos, os médicos tendem a defender-se uns aos outros, ou pelo menos a dar o benefício da dúvida". Está convencido de que há arquivamentos porque também há queixas infundadas: "Passou-se do oito ao 80. Houve uma altura em que ninguém processava médicos. Agora qualquer coisa que já não se compreende e acontece num hospital é razão para apresentar queixa. E a medicina não é uma ciência exacta, há coisas que escapam." Mas também os há porque "as pessoas que apreciam as queixas não têm conhecimentos clínicos e fazem-no ou com base nos depoimentos dos próprios suspeitos ou em pareceres da Ordem dos Médicos, do colégio de cada especialidade, que não deixam de ser feitos por pessoas que são colegas de profissão", lembra Medeiros.
Se um caso é arquivado à partida - e não são raros os casos que não chegam a julgamento -, ou o queixoso pede reabertura de inquérito ou abertura de instrução. Mas para o fazer tem de apresentar novas provas e "não é fácil" que particulares cheguem a dados clínicos ou "encontrem médicos que aceitem ir contra outros", reforça o penalista. Os atrasos das entidades responsáveis pelos pareceres tendem a eternizar os inquéritos e também não são raras as prescrições: como a moldura penal do homicídio por negligência é curta, os prazos de prescrição também o são. Além disso, "tirando nos casos em que o médico se esquece da tesoura, é sempre matéria controvertida", aplicando-se o princípio do in dubiò pro reo. "Parte-se do princípio que mesmo que as coisas tenham corrido mal os médicos estavam convictos de que estavam a actuar bem", explica João Medeiros, que junta ao rol de críticas o problema dos tribunais administrativos, responsáveis por decidir nos casos em que se entende que a culpa é de um hospital público. "Aplicam-se as regras do cível, mas estes juizes não estão habituados a fazer apreciação de prova em julgamento."
Medeiros está habituado a estar dos dois lados: ora do lado dos acusados, ora do lado das vítimas. Há quase 15 anos que carrega a história de Sancha Zoio, que devido a atrasos na assistência do parto, no Hospital São Francisco Xavier, em Lisboa, nasceu como se fosse um vegetal: sem ver, sem falar, sem andar.
O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já condenou o Estado português devido aos atrasos na resolução do caso. A mãe e o advogado continuam à espera do desfecho nos tribunais administrativos. Sancha já morreu, o pai também.
Casos: Como as negligências acabaram nos tribunais
AIDA DOS SANTOS: SEPTICEMIA NO HOSPITAL DA CRUZ VERMELHA Ficou provado que, "apesar de a doente se deslocar ao hospital para fazer pensos, o médico cirurgião não curou de a vigiar, apesar de ciente dos riscos pós-operatórios de infecção ou inflamação", agravados por "se tratar de uma doente de alto risco em termos infecciosos" e que, "por ser obesa e diabética", exigia "cuidados redobrados". Ainda assim, a juíza concluiu não ter ficado provado que a actuação do médico e do cirurgião que operaram e depois terão deixado a doente "à sua sorte" tenha sido "causa directa da morte". Foram absolvidos. Antes que se esgotassem os recursos, o caso prescreveu.
SÉRGIO LUÍS: COMPRESSA ESQUECIDA EM PORTIMÃO Em 2001 tinha 41 anos e foi operado ao ombro esquerdo no Hospital Particular do Algarve, em Alvor. Durante a cirurgia, o médico esqueceu-se de retirar uma compressa e Sérgio acabou por ficar com uma incapacidade permanente de quase 10%. Além disso, terá ficado inactivo durante nove meses e perdido um negócio de que era proprietário. O Tribunal de Portimão absolveu o clínico e o hospital. A Relação de Évora condenou o médico a pagar 197 549 euros. O caso acabou com o Supremo a confirmar a condenação do clínico. Só que a indemnização baixou para os 32 500 euros.
SANCHA ZOIO: PARALISIA CEREBRAL PÓS-PARTO Paula teve de esperar nove horas para começar o parto, apesar do avanço das dilatações quando deu entrada do Hospital de S. Francisco Xavier, em Lisboa. Não havia anestesistas e a filha, Sancha, acabou por ser arrancada a ferros e ventosas. Quando nasceu, Sancha já tinha as células do cérebro mortas. A família interpôs uma acção contra o hospital por atrasos na assistência do parto mas o caso ainda não teve desfecho. Sancha acabou por morrer, em 2005, o seu pai pouco tempo depois. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já condenou o Estado português por atrasos na resolução do processo.
FELÍCIA MOREIRA: SEPTICEMIA PÓS-ENSAIO CLÍNICO A 20 de Fevereiro de 2004, Felícia Moreira, que tinha 59 anos e sofria de artrite reumatóide, morreu com uma hemorragia associada a septicemia, depois de ter participado num estudo clínico do medicamento Humira. Segundo o filho, o médico terá ignorado as queixas da mãe de que não se sentiria bem e não terá suspendido o ensaio clínico a tempo. O médico, por seu turno, argumentou que suspendeu a toma do medicamento "e foi a doente que continuou com o tratamento sem [o seu] conhecimento e autorização". Em 2012, os juízos criminais do Porto absolveram o reumatologista do Hospital de S. João.
MULHER MORRE DEPOIS DE IR ÀS URGÊNCIAS Deu entrada no Garcia de Orta em 2003 e recebeu alta quatro horas depois, acabando por morrer em casa, meia hora depois. A médica foi pronunciada por homicídio por negligência. O Tribunal de Almada absolveu-a. A Relação determinou a repetição parcial do julgamento e o tribunal voltou a absolver. Como a 1 .a instância recusou julgar o pedido de indemnização civil, a acusação voltou a recorrer para a Relação, que decidiu anular o julgamento integral e a sentença. O processo voltou a ser julgado em Almada e a médica voltou a ser absolvida. Em Abril deste ano, a Relação deu os factos como prescritos.
Sílvia Caneco | i | 19-07-2014
Comentários (1)
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1.
Salvo casos mais ou menos óbvios, como o deixar-se um instrumento cirúrgico ou uma compressa no corpo do doente, os outros casos são difíceis de provar.
Repare-se que quem em primeiro lugar vai fornecer elementos para se poder dizer, ou não, se houve negligência médica são os hospitais e os próprios médicos.
Nem uns nem outros têm interesse em que se investiguem os erros.
Como é que terceiros (lesados e tribunais) saltam este muro?
Os juízes não são médicos e têm de aceitar aquilo que os hospitais e pareceres médicos dizem.
Como vão detectar possíveis erros de análise ou até deslocação ou encobrimento da verdadeira questão que conduziu ao dano? Não vão.
Numa situação destas, o que é que vale o tribunal?
Vale apenas o que valerem os hospitais e médicos em termos de honestidade e coragem.
2.
Quem é o médico, perito médico, responsável hospitalar que se arrisca a dizer que no caso A houve negligência, sabendo que com isso provavelmente ganhará uns quantos inimigos, passará a ser olhado de lado, tido como de pouca confiança, e poderá ter a prazo, inclusive, o lugar em risco, quando surgir oportunidade para acertar contas, ou ser preterido num concurso?
Claro que isto que fica dito não existe, é mera divagação sem provas.
Mas adivinha-se todo um mundo de sentimentos e emoções que cada profissional vive (em qualquer profissão e instituição), silencioso, de sobrevivência, de que não se fala por não ser pouco edificante.
3.
Mas o juiz sempre poderá, pelo menos, fazer um esforço de investigação para compreender minimamente a matéria que estiver em causa.
4.
E quando se trata de trabalho em equipa até parece que não há na equipa alguém a dirigir e a responsabilidade vai passando do topo até à retaguarda (sem esquecer o enfermeiro ou o pessoal administrativo que faz a limpeza e recolhe o material).
5.
Ninguém pretende, julgo eu, crucificar os médicos; fazem o melhor que podem e sabem, mas quando há erros (como os há em qualquer actividade, pois só não erra quem não age), quem sofre o dano deve ser indemnizado e não deve suportar totalmente o erro alheio.
Tenham respeito (para não falar em compaixão, pois parece que a palavra soa mal ao ouvido) de quem sofre e por vezes para o resto da vida.
Para que servem os seguros?
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