Instituto de Medicina Legal recebe cada vez mais pedidos de pareceres técnicos em casos de alegadas más práticas profissionais, mas falta de jurisprudência leva tribunais a tomarem decisões díspares.
Uma pinça com 18 centímetros esquecida no interior do abdómen de uma doente durante uma cirurgia, uma criança a quem os médicos não diagnosticaram uma apendicite e que acabou por morrer, um homem com suspeita de enfarte agudo que foi transferido de um hospital central para um distrital e também não sobreviveu. São três histórias entre as centenas que têm chegado aos tribunais portugueses nos últimos anos. Em apenas 13 anos, o número de queixas por alegada negligência grave contra médicos e outros profissionais de saúde mais do que quintuplicou. O Conselho Médico-Legal do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), órgão ao qual os magistrados recorrem em situações complexas e graves para pedir pareceres técnicos, passou de 33 processos analisados, em 2001, para 184 no ano passado.
O pico de processos avaliados por estes peritos registou-se em 2008. Mas, depois de uma quebra nos anos seguintes (ver gráfico), os casos voltaram a aumentar em 2012 e 2013, adianta o médico Gonçalo Castanheira, que dedicou a sua tese de mestrado à responsabilidade profissional dos prestadores de cuidados de saúde.
Estes números podem, mesmo assim, ser apenas a "ponta do iceberg", a "parte visível de uma responsabilidade desconhecida", avisa o especialista, porque "há cada vez mais actos médicos" e as pessoas "estão cada vez mais sensibilizadas" para a responsabilização dos profissionais de saúde. O conselho médico-legal é normalmente chamado a dar parecer, a avaliar se houve ou não violação da leges artis (das regras da profissão médica) em casos mais graves que normalmente resultam em morte ou em incapacidade permanente. A esmagadora maioria destes casos são histórias de alegada má prática de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde.
O número de processos que chega ao Conselho Médico-Legal apenas dá uma ideia aproximada da dimensão do fenómeno, porque em Portugal é impossível contabilizar com rigor todas as queixas enviadas para os tribunais, para as ordens profissionais e para organismos como a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde. Grande parte acaba por ser arquivada e as condenações são a excepção.
"O sistema não beneficia nem o doente nem o médico. O doente tem que provar que houve culpa com dolo, o que quase nunca acontece. O doente deveria ser ressarcido sem ter que provar a culpa", defende Gonçalo Castanheira. Um dos problemas prende-se com o tempo que os processos demoram nos tribunais. A família da menina a quem não foi diagnosticada uma apendicite no Hospital Pediátrico de Coimbra só conheceu a sentença da primeira instância em Novembro do ano passado, mais de nove anos após a sua morte. Passado todo este tempo, os dois médicos acusados foram absolvidos, devendo o caso arrastar-se agora pelos tribunais superiores.
A justiça portuguesa demora cerca de oito anos, em média, até chegar a uma sentença neste tipo de queixas, concluiu a farmacêutica Lígia Ernesto, depois de analisar 210 casos relativos a erros, negligência médica e outros eventos adversos noticiados entre 1974 e 2011. Em quatro casos, vítimas e acusados tiveram de aguardar mais de 12 anos pela decisão judicial. Também o valor das indemnizações varia substancialmente. No caso do esquecimento da pinça no abdómen da doente, um cirurgião e duas enfermeiras foram condenados a pagar 14.400 e de 10.600 euros, respectivamente. Já a cardiologista do homem que morreu na sequência de um enfarte agudo de miocárdio não-diagnosticado foi multada em 8400 euros. Mas há sentenças que impõem já indemnizações elevadas. E acordos extrajudiciais, como o que levou o Estado a pagar um total de 597 mil euros aos seis doentes que ficaram cegos no Hospital de Santa Maria, na sequência de uma troca de medicamentos na farmácia da unidade de saúde. O doente que ficou sem ver dos dois olhos recebeu 246 mil euros, valor que foi definido por uma comissão arbitral.
"Na medicina legal há tabelas, mas nesta matéria ainda não existe jurisprudência. A responsabilidade profissional em saúde é recente", observa Gonçalo Castanheira, que analisou em detalhe 66 processos de unidades do concelho de Coimbra entre 2001 e 2010. Em quase um quinto dos casos (18,18%) os pareceres do Conselho Médico-Legal concluíam que a actuação dos profissionais de saúde não tinha sido a mais adequada.
Corrigir erros sem punir profissionais
Era para ser um sistema de prevenção de erros médicos, pondo profissionais de saúde e utentes a comunicar situações passíveis de correcção, sem intenção de punir os implicados. Mas, para já, não é fácil perceber se está a a servir o fim para o qual foi criado. No primeiro ano de funcionamento, a plataforma online de comunicação de "incidentes e eventos adversos" (vulgarmente designados como erros médicos) da Direcção-Geral da Saúde (DGS) recebeu 318 notificações, a maior parte enviadas por profissionais de saúde. Apenas 74 foram feitas por utentes, o que prova que este sistema anónimo e confidencial ainda é pouco conhecido. O sistema foi criado depois de a DGS ter concluído, na sequência de um diagnóstico da situação levado a cabo em 70 hospitais, em 2009, que apenas duas dezenas das unidades tinham programas de gestão de risco clínico e de segurança do doente.
O erro médico é um fenómeno frequente e inevitável, sendo diferente da negligência, situação em que há uma violação das regras da profissão e deficiente prestação de cuidados. Este fenómeno está estudado e é devidamente monitorizado em vários países, mas em Portugal existem apenas estimativas. O médico José Fragata, no livro Erro em Medicina, calculava que o número de doentes internados nos hospitais portugueses que morre devido a erros clínicos deverá rondar os três mil por ano, extrapolando a partir das estatísticas internacionais.
Mais de metade destes erros poderiam ter sido evitados, frisava.
Alexandra Campos | Público | 27-01-2014
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