Diabolizado pelo Governo e por Bruxelas, o TC é o fiel da balança. A situação de exceção que Portugal vive, somada à incapacidade das forças políticas para obter um consenso, levou o Tribunal Constitucional, outrora tão discreto, a assumir um papel-chave, corrigindo muitas medidas do Governo.
Foi a mais recente decisão e, nova mente, com forte impacto. A lei da convergência de pensões entre o sector público e privado foi chumbada pelo Tribunal Constitucional (TC). O acórdão compromete as contas públicas, obrigando o Governo a buscar alternativas para as recompor.
Ao longo do ano, não foram poucos os que anteciparam o apocalipse, nos momentos dos veredictos do TC. Se internamente abundaram as opiniões mais ou menos assertivas, externamente foi quase em uníssono: agências de rating, FMI, Mario Draghi, anónimos "altos funcionários" da Comissão Europeia e documentos da própria Comissão, a troika enquanto tal, até a OCDE! Durão Barroso falou de "caldo entornado" e um alto responsável do Eurogrupo acusou o TC de ser "ativista".
O "risco constitucional" (a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade de medidas da maioria) passou a ser afixado ao lado dos outros perigos que ameaçam o país e são revistos a cada avaliação da troika, como o risco financeiro, o não crescimento, o desemprego, a crise política ou a recessão. Como alguém disse, para grande surpresa do povo português, o tão discreto TC "intemacionalizou-se".
De uma forma ou de outra, o TC foi levado pelas forças políticas a ocupar um lugar central na vida nacional. Nesse papel, tem sido constante e rudemente posto à prova. Além da convergência das pensões, basta enunciar, e só relativamente ao ano que agora finda, outros assuntos que passaram pelo crivo dos juizes do Palácio Ratton: Orçamento de 2013: parcialmente chumbado; lei da mobilidade dos funcionários públicos: chumbada; lei das 40 horas: viabilizada; lei dos Açores sobre as 35 horas na função pública: chumbada. E ainda: novas normas do Código laborai: chumbadas seis das 15; lei da limitação dos mandatos dos presidentes de Câmara: viabilizada; lei do Tribunal Arbitral do Desporto: chumbada (e por duas vezes!).
Em breve, tal como aconteceu com as três últimas leis orçamentais, o TC será chamado a decidir sobre o orçamento para 2014, o qual só esta semana entrou em Belém. Ainda não se sabe se o Presidente o enviará ao tribunal, mas é garantido que lá chegará pela mão dos partidos da oposição. Mais uma vez, o país ficará suspenso do acórdão do TC, quando se avizinha o final do programa de ajustamento e uma eventual negociação de um programa cautelar.
É por isso que o TC acaba por fazer parte do jogo político — o que não significa, como inúmeros estudos têm demonstrado, a sua partidarização. A este propósito, o ex-presidente do Tribunal, Rui Moura Ramos, dizia que os juizes do TC têm "um dever de ingratidão" perante o Parlamento, considerando como não conformes à lei fundamental os diplomas emanados do órgão que os nomeou.
Por causa das posições do TC, Passos Coelho acusou os juizes de falta de "bom senso"'. O tribunal tem sido visto como um "obstáculo" pela maioria (que assim justifica interna e externamente algumas das suas opções), como "salvaguarda" ou "último reduto" pela oposição e como "guardião" pelo Presidente da República —, que ainda no princípio do ano, ao justificar o envio do orçamento para o TC, declarou que "a Constituição não está suspensa".
TC validou 4/5 do valor da austeridade
Mas há outras visões. O ainda bastonário dos Advogados, Marinho Pinto, por exemplo, equiparou-o a um "Senado". Já José Pacheco Pereira, muito crítico do atual Governo, considerou o TC "o último baluarte antes da desobediência civil". D. Januário Torgal Ferreira, o bispo emérito das Forças Armadas, vê-o como "a prova de que quem defende Portugal é a força do direito". E Moura Ramos pensa que o tribunal tem cumprido o papel que se espera dele, que é o de "fazer o juízo crítico das leis na sua conformidade com a Constituição".
A verdade é que, em três anos, o Tribunal Constitucional já validou em acórdãos de fiscalização abstrata (respeitantes a normas e não a casos concretos), 7,7 mil milhões de euros em medidas de austeridade. Tal representa 82% do valor das propostas que foram submetidas à sua apreciação — e desmente a tese de que o TC é uma "força de bloqueio".
Mas árbitro ou protagonista da vida política, é-o certamente. E um órgão político na exata medida em que tem uma função de contrapoder, criado, tal como os seus congéneres a nível mundial, com o objetivo expresso de zelar pela boa aplicação da Constituição, a mais política de todas as normas.
No genuíno sentido do termo, é o "guardião da Constituição" — a da que existe — e por isso são políticas as suas decisões, que são, afinal, interpretações dessa mesma Constituição. Tal facto faz do TC um decisor político? Seguramente que não. Não faz leis e só se pronuncia a pedido, embora frequentemente aponte o caminho ao legislador quando as chumba. Mas tem sido usado pelos políticos como um "instrumento", uma "arma política", e mais ainda em tempos de alta conflitualidade como acontece agora, em situação aguda de crise e de mudanças profundas no modelo de organização das sociedades europeias. É, aliás, pelo "estado excecional" que vive Portugal que o Governo tem justificado as medidas que propõe.
A Constituição portuguesa não é imutável — provam-no as sucessivas revisões desde o texto inicial, em 1976. Mas no fundamental tem permanecido a mesma ao longo de quase 40 anos e 19 governos eleitos de acordo com as suas regras. No fundo, ela é a essência do consenso nacional. E é exatamente porque ele não existe — ou porque os políticos não o têm procurado, ou têm tentado contorná-lo — que o Tribunal Constitucional é chamado a pronunciar-se exatamente sobre as questões que, antes de mais, deviam ser objeto do consenso político.
Rui Rio, ex-presidente da Câmara do Porto, dizia que a única maneira de evitar recorrer ao TC é chegar a um consenso: "Com a Constituição como está, ou com alterações à Constituição". Só assim a sociedade deixaria de estar suspensa das decisões do TC e este poderia recuperar a "discrição" de outrora. Mas se os políticos estão dispostos a isso, já é outra história.
Luísa Meireles | Expresso | 21-12-2013
Comentários (1)
Exibir/Esconder comentários
Escreva o seu comentário
< Anterior | Seguinte > |
---|