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REVISTA DE 2013

"O debate é ideológico"

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Quando se ataca o papel dos juízes-conselheiros do Tribunal Constitucional, o debate real é o ideológico. Em causa está o modelo de sociedade que se defende.

Até o filósofo Jürgen Habermas "diz, no seu último livro, que Cavaco Silva pediu fiscalização sucessiva do OE porque este impunha sacrifícios e o Presidente deu resposta política aos pedidos da rua". É o constitucionalista Gomes Canotilho que invoca esta passagem para explicar que o problema português tem contornos ideológicos. Por causa destes contornos, entende que há um falso debate em torno do papel do TC. "Não se discutem os verdadeiros problemas e se atiram as responsabilidades para cima do tribunal". Para este constitucionalista, "não está em causa um dogma para controlar a Constituição" em Portugal e "a fiscalização constitucional é sempre uma fiscalização política". Um exemplo foi o que se passou com o TC alemão, "ameaçado por Merkel se impedisse o pacto de estabilidade, numa tentativa de pressão política".

O argumento que o catedrático devolve aos que consideram que "o TC tem problemas que derivam do facto de a Constituição incluir direitos fundamentais políticos, sociais e culturais", é que precisam de perceber que "esses direitos estão não só na Constituição portuguesa, eles estão e estavam antes nas convenções das Nações Unidas e em tratados internacionais e europeus a que a Constituição obedece". Por seu lado, António Vitorino lembra que "não há um problema nem uma questão com a Constituição portuguesa". Os princípios da confiança, da igualdade, da proporcionalidade "são princípios constitucionais gerais, podem ser considerados subjectivos – na verdade são-no –, mas a lei é subjetiva.

Se "no estudo do Direito se parte do princípio de que uma coisa são os direitos fundamentais e outra os direitos económicos e sociais e culturais", então, defende Canotilho, deve ter-se em conta que, por exemplo, "a Igreja Católica vem dizer que são unos, ou seja, que hoje em dia não faz sentido dizer-se que o direito ao primeiro suspiro é universal e que o direito ao primeiro Cerelac não é".

Assumindo que o debate sobre o TC e o seu papel é um debate ideológico, Canotilho defende que "na Constituição portuguesa há uma incomensurabilidade entre o que é o discurso jurídico e o económico", tendo ao centro o debate sobre direitos. "Há quem diga que o Estado deve estar contra os direitos, mas, como explicou Tony Judt, ao longo do século XX, houve uma banalização do bem através do Estado. Hoje fala-se na privatização da distribuição da água, dantes um copo de água não se negava."

O "debate ideológico profundo que está nesta reforma do Estado" passa por "saber até onde pode desaparecer o Estado Social", o que implica debater "o perfil constitucional" e "o papel do TC". Assim, explica Canotilho: "A questão de saber se são ou não 40 horas de trabalho é um pormenor deste debate ideológico. As pessoas sonegam que há um debate ideológico em curso. O problema do TC é um problema menor, o debate é ideológico."

No mesmo sentido vai Moura Ramos, ao afirmar que, se "a realidade é que o Estado gasta de mais e não pode continuar a funcionar assim", ele deve ser reformado por acordo político, em vez de se estigmatizar o TC. "Quando se percebeu que o modelo de reformas não podia perdurar, deviam ter-se introduzido alterações no modelo", diz Moura Ramos, usando a Segurança Social como exemplo. "O que foi feito durante algum tempo foi o contrário, as pessoas foram induzidas a vir mais cedo para a reforma", quando a esperança de vida é maior.

A ideia de que o problema não está no TC, mas no sistema, é reforçada. "Este sistema de pensões tem de ser alterado. Agora o problema é como fazer essa alteração sem pôr em causa a ideia constitucional da proporcionalidade. A questão das reformas, por exemplo, não carece de revisão constitucional, é só resolver o ajustamento no modelo do sistema de pensões."

Igualmente Cardoso da Costa adverte para que este debate é político e ideológico e que é fácil, para o poder, usar o TC e a Constituição como uma espécie de bode expiatório. O antigo presidente do TC avança mesmo com um exemplo clássico que demonstra como é antiga a politização do debate sobre as decisões do órgão que fiscaliza o cumprimento da Constituição: "O Supremo dos EUA foi acusado pelo Presidente Roosevelt de estar a impedir a sua política. Roosevelt lançava a New Deal e viu leis vetadas. Roosevelt promovia os gastos públicos próprios da política keynesiana, na legislação que se destinava a que a federação tivesse actividade e iniciativa de liderar investimento. Isso foi considerado que interferia com a independência dos estados federados face ao Governo federal. Diz-se que Roosevelt pensou em alterar a Constituição para alterar o perfil e o estatuto do Supremo Tribunal."

O poder de travar as leis é sempre polémico

Uma das expectativas que a aprovação do Orçamento do Estado para 2014 é a de saber se o Presidente da República, Cavaco Silva, vai pedir a fiscalização do TC e se o fará usando o seu poder de requerer a fiscalização preventiva. Um poder que detém antes de promulgar qualquer diploma e que a Constituição estende ao primeiroministro e a um quinto dos deputados da Assembleia apenas em relação às leis orgânicas.

O ex-presidente do TC Cardoso da Costa é peremptório a afirmar que é "contra a fiscalização preventiva do OE" e sublinha que "nunca houve" nenhum Orçamento do Estado submetido a fiscalização preventiva. A contestação à fiscalização preventiva é antiga, embora sejam "poucos TC onde não há fiscalização preventiva", diz Paulo Mota Pinto.

A contestação surge pelo facto de que quando responde a um pedido de "fiscalização preventiva o TC interfere no processo legislativo", explica o antigo juiz do TC e hoje deputado do PSD. E sublinha que "há sempre uma apreciação política, há sempre um confronto na fiscalização preventiva". E aponta como exemplo os casos de Mário Soares com o primeiro-ministro Cavaco Silva. "Já Jorge Sampaio fazia mais pedidos que eram consultas jurídicas."

Por seu lado, Gomes Canotilho considera que "a fiscalização preventiva é um mal necessário". Este catedrático da Universidade de Coimbra sublinha que "há proximidade entre o processo político e a análise preventiva de constitucionalidade". Mas explica que o papel dos TC é precisamente ser o contra peso à maioria política dentro do que é o desenho do Estado de Direito Democrático. E afirma: "O TC é uma instituição contramaioritária. O problema é, assim, de saber se deve haver controlo constitucional que se perfile como contramaioritário à maioria que tem legitimidade constitucional."

Jorge Miranda, outro constitucionalista, salienta que a fiscalização preventiva "não é uma originalidade portuguesa, há em mais países, é o caso da França, da Irlanda, da Itália, da Costa Rica, da India, de Chipre, de Espanha, da Bulgária, da Roménia, da Polónia, da Finlândia, da Hungria e de Angola". Jorge Reis Novais, também catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, salienta que nem todos os países têm fiscalização preventiva. "Há em França, mas não na Alemanha."

Reis Novais sustenta que a "preventiva nunca foi usada em OE anteriores", porque estes "não tinham violações de direitos, por isso o problema não se colocava". Perante a necessidade de Cavaco Silva a usar em relação ao OE para 2014, pergunta: "Se o TC disser, mais à frente, que os cortes nos salários são inconstitucionais, o Governo vai repor o dinheiro dos salários? Deixa de haver os cortes?"

A fiscalização preventiva é "o poder máximo e singular do Presidente, se quiser, ele pode, mesmo que haja dúvidas, não pedir", argumenta Reis Novais, acrescentando que, "mesmo que haja uma lei que se diga que é grosseiramente inconstitucional, o Presidente pode não pedir". E ironiza: "O Presidente português não é um notário, ele faz opções políticas."

Por isso é que Reis Novais sustenta que "a fiscalização preventiva sempre foi controversa", ao chamar o TC a decidir e a participar no debate político antes de haver lei. Apesar dessa situação, o especialista em poderes presidenciais afirma que "os benefícios da preventiva são maiores, tem funcionado bem em Portugal, é um instrumento forte na mão de um Presidente".

No final é a opção política que dita a decisão. "Cavaco acusava Soares de fazer política [contra os seus Governos] com a fiscalização preventiva, como agora usa a favor do Governo."Já o Presidente Jorge Sampaio, em 2003, não usou a preventiva para mandar para o TC as alterações ao cálculo das pensões, que estavam no OE, e usou a sucessiva porque, embora no OE, "não era uma matéria orçamental e não perturbava a execução do OE". Mas, quando se trata de matéria orçamental, Reis Novais refere que "perturba e tem perturbado, cada ano que passa mostra que deve ser preventiva, porque a sucessiva interfere com a execução do OE."

Segundo Reis Novais, "o Presidente não usa a preventiva "porque não quer criar dificuldades ao Governo" e assume a oposição: "Não aceito argumentos do Presidente. Dizer que nunca ninguém pediu não é argumento. Era mais adequado esclarecer agora. O país nunca fica sem Orçamento. Mesmo que não fique resolvido até Janeiro, o país entra em duodécimos."

Em defesa da sua tese, Reis Novais argumenta com o que se passou com o Código do Trabalho, que o TC considerou com regras inconstitucionais, há dois meses: "As empresas protestaram. E questionam-se sobre se agora têm de admitir de novo despedidos." O catedrático prossegue: "O Código é de 2012. Por que não pediu preventiva quando já se conheciam as dúvidas? Por que quis agradar ao Governo e não usou preventiva? É mau porque não deve apoiar assim o Governo."

São José Almeida | Público | 17-11-2013

Comentários (3)


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O estimado Professor GC diz que «O TC é uma instituição contramaioritária». Claro, já aqui o disse por mais d euma vez. Vejamos: os cortes do ledrão das beiras foi declarado constitucional porque os juízes do tc são socialistas, na sua maioria... Agora, porque são socialistas, já são inconstitucionais. Todos os cortes posteriores, note-se bem, pese embora num ano tenham suspendido a CRP!
Para o ano ou em 2015, conforme o ano das eleições e o respectivo resultado, veremos o que os homens de negro dirão. Sobretudo se ganhar o Seguro, ainda que por 1 voto.
Sun Tzu , 17 Novembro 2013
opções
a política legislativa democrática respeita a fazer opções.
estas opções devem respeitar a lei fundamental.
o defensor da lei fundamental é o tc. em todo o mundo ocidental democrático
portanto, o tc deve fiscalizar se as opções legislativas violam ou não a lei fundamental.

simples. numa democracia a sério, do 1º mundo.
pli , 17 Novembro 2013
Amigos amigos, ideologias à parte.....
É um debate mto ideológico, com metade da população a virar costas ao país e partir (novamente) em busca do que não encontram por cá: uma vida melhor!
Qto mais não seja, simplesmente, uma vida.
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maria , 18 Novembro 2013

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