Crime. Dados das autoridades policiais registam um maior número de participações este ano, numa média de 73 por dia. Desde 2010 que se vinha a registar uma diminuição das queixas.
Muitas das histórias de vida conjugal começam como um conto de fadas. Em outras descobrem-se sinais de que não vai ser um mar de rosas nos primeiros contactos. Mas quando chegam às associações e polícias revelam vivências de agressões, físicas e psicológicas, com as mulheres a queixarem-se de que o "cordeiro despiu a pele e o lobo apareceu".
Em 2013 já foram registadas mais de 20 mil denúncias de violência doméstica junto das polícias, o que aponta para um aumento em relação a 2012.
Chegam à GNR e à PSP muitos casos iniciados por denúncias junto de organizações não governamentais, como a Associação de Apoio àVítima (APAV). São as mulheres de menores recursos (económicos e educativos) que a elas mais recorrem, revelam os técnicos da APAV As das classes mais favorecidas facilmente contactam a esquadra ou um advogado, mas todas as queixas vão parar às autoridades policiais: 7852 até 31 de agosto junto da GNR e 11300 até 30 de setembro na PSP.
A PSP justifica o "número significativo de crimes e de vítimas" com "um progresso" na sua atuação "em todas as vertentes". Nos primeiros nove meses do ano identificaram 17 400 vítimas e fizeram 230 detenções. Muitas das ofendidas tinham ferimentos ligeiros, registando-se 80 situações graves e seis vítimas mortais.
A diferença no tratamento dos dados, a que o DN teve acesso, não permite quantificar com exatidão o número de denúncias apresentadas a mais em 2013, mas apontam para uma subida comparativamente a 2012. "Pode dizer-se que há uma tendência para aumentar o número de queixas, mas essa avaliação só poderá ser feita no final do ano", explica o tenente-coronel João Nascimento, responsável pela Divisão de Investigação Criminal, onde estão criados os núcleos de apoio às vítimas.
Há uma média de 73 queixas por dia de violência doméstica junto das polícias este ano (71 em 2012), mas o ritmo a que são feitas varia consoante a hora, o dia da semana e os meses. "É um crime muito associado à conjugalidade. Há um maior número de ocorrências nas férias, os fins de semana e nos períodos noturnos", diz o tenente-coronel Nascimento.
Sandra, 19 anos, foi uma das mulheres que pediram apoio junto da APAV "Quando aconteceu, eu não estava à espera. Conheci-o numa festa, nas férias. Era bonito e senti uma grande atração por ele. Parecia ser boa pessoa, mas, naquela mesma noite, o cordeira despiu a pele e o lobo apareceu. Tínhamos ido para um miradouro isolado, à procura de uns bons momentos à frente do mar, escondidos na noite, à espera de que a lua desse ainda mais brilho àquele encontro. Romântico, não é? Enganei-me."
A história de Susana é igual a muitas outras, com a diferença de que a maioria tem por detrás anos de agressões por parte do marido, do companheiro ou do namorado. As mulheres são as principais vítimas, sobretudo as do grupo etário dos 35 e 40 anos. Há quem leve anos até decidir apresentar queixa: "O meu marido sempre me bateu, desde o namoro. Há um dia em que a gente não aguenta mais e decide mudar de vida, sair, ter liberdade para ser feliz. Não foi fácil!"
2012
26 mil crimes de violência doméstica registados pela PSP e pela GNR no ano passado, indo 59% dos casos para a Polícia de Segurança Pública
2013
20 mil crimes registados já este ano em Portugal pelas forças de segurança, com a PSP a contabilizar 17 400 vítimas até 31 de setembro
Crianças expostas a agressões são sinalizadas
Menores Violência doméstica ultrapassa negligência na sinalização de crianças e jovens em risco junto das comissões de proteção
A Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco (CPCJ) sinalizou 14 930 casos no primeiro semestre do ano. A principal causa é "a exposição a comportamentos que podem comprometer o bem-estar e o desenvolvimento da criança, em 94,1 % no âmbito da violência doméstica".
Os primeiros dados da CPCJ de 2013 confirmam a alteração registada no ano passado no que diz respeito às situações de perigo que levam à denúncia junto das comissões. A negligência, que era a principal causa, foi substituída pelos casos de "violência doméstica vicariante": as situações em que os menores são expostos a comportamentos agressivos a terceiros, sejam físicas ou psicológicas.
As autoridades policiais constituem uma das principais fontes de sinalização. Nos primeiros seis meses de 2013, consideram que 3551 menores corriam perigo no seio de uma família com violência doméstica, 20,5% dos processos. Sempre que há uma denúncia de violência junto das autoridades policiais é obrigação do agente denunciar os casos de perigo para as CPCJ.
"Se a situação de violência doméstica constituir perigo para a criança ou para o jovem, as autoridades policiais participam às comissões de proteção", diz Armando Leandro, presidente da CPCJ. Fontes da PSP e GNR confirmam esse registo, mas não têm contabilizada a percentagem de situações em que o fazem. "Normalmente, é questionado se as crianças assistem ou não às agressões e, consoante a gravidade, sinalizam o caso, o que vai depender da avaliação que faz o próprio agente quando é apresentada a queixa-crime", explica Maria Oliveira assistente social da APAV A escola está na linha da frente na avaliação de crianças e jovens em risco, tendo sinalizado 5480 casos, 73,2% do total. Os pais devem dar consentimento para a intervenção das comissões, caso contrário o processo vai para tribunal.
5 PERGUNTAS A...
"Testemunho de figuras públicas é incentivo"
JOÃO LÁZARO - Pres. da APAV
- Voz diferença ter personalidades conhecidas a falarem, em público, de como foram vítimas de violência doméstica?
- Sem dúvida. A APAV tem essa experiência com figuras públicas como a Catarina Tallon e a Lisa Hardy, que serviram de incentivo a outras pessoas para denunciarem as suas situações. Muitas das pessoas que procuram o nosso apoio são de classes sociais mais desfavorecidas e são essas que habitualmente contam as suas histórias. Têm menos a perder em dar a cara.
- As personalidades que referiu foram das poucas que vieram a público falar disto. Nas classes mais altas há mais a perder?
- Nessas classes existe uma perda do mundo social e do estatuto. Essas mulheres têm receio da punição ou expulsão pelos seus pares. Por isso é que os testemunhos de Catarina Tallon e Lisa Hardy foram o início de uma mudança de mentalidade, para se passar avera violência doméstica como transversal a todas as classes sociais. Ambas foram apoiadas pela APAV, como as próprias assumiram.
- Há diferenças nas formas de violência usadas nos estratos sociais mas elevados?
- São usadas formas mais subtis e sofisticadas de violência. Se for preciso o agressor nessas classes molha a toalha para bater na mulher e não deixar marcas. Ou seja, para dificultar a prova. É uma violência mais dissimulada devido ao receio de se perder o estatuto social. Por isso é que as vítimas das classes A e B preferem contar os seus casos na linha telefónica de apoio, para não se mostrarem.
- A Bárbara Guimarães conta com o apoio da APAV neste momento?
- Esse dado é confidencial. O que lhe posso dizer é que a APAV está sempre disponível para apoiar vítimas de crimes, sejam elas anónimas ou figuras públicas.
- As participações à APAV por este crime estão a diminuir?
- Sim, ligeiramente, na ordem de um por cento. Atribuímos essa diminuição à crise económica e seus efeitos nas famílias
Céu Neves e Rute Coelho | Diário de Notícias | 30-10-2013
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