Os inspectores da Inspecção-Geral de Finanças (IGF) só podem participar ao Ministério Público (MP) as irregularidades que detectarem em câmaras municipais se conseguirem provar a culpa dos autarcas. A IGF elaborou um documento que enquadra em que situações podem ser feitas as participações ao MP e altera de forma substancial a forma como essas denúncias eram feitas na ex-Inspecção-Geral das Autarquias Locais. Especialistas avisam que o apuramento de culpa cabe ao tribunal e a comunicação de ilegalidades é obrigatória.
O documento, a que o Negócios teve acesso, estabelece que, se o acto em causa puder resultar na perda de mandato ou na dissolução do órgão, o inspector deve "munir-se de meios de prova que demonstrem a culpa grave dos respectivos autores". Caso se trate de um ilícito que possa ter relevância em sede criminal ou tutelar, "apenas quando forem obtidas evidências que demonstrem a culpabilidade dos autores" é que "deverá o processo ser tramitado com vista à sua remessa parao MP".
O documento esclarece que não fica afastada a "responsabilização, quer dos autores, quer de terceiros, em sede criminal, civil e financeira". Contudo, para os inspectores que fiscalizam as câmaras, o receio é que a "malha" esteja tão apertada que impossibilite a participação de qualquer irregularidade encontrada. O Negócios enviou várias questões ao inspector-geral de Finanças, José Leite Martins. Uma semana depois, não recebeu qualquer resposta.
Os inspectores ficam obrigados a provar a culpa dos autarcas. Contudo, "a determinação da culpa é feita em julgamento", explica Paulo Farinha Lopes, especialista em Contencioso. Já "o MP tem que provar que há fortes indícios de actuação culposa", pelo que "a prova de culpa é uma exigência muito elevada nesta fase [de inspecção]", admite o jurista
Na IGAL, as infracções eram participadas ao Ministério Público, junto do tribunal judicial, sempre que configurassem ilícito criminal. Se fossem ilícitos administrativos ou tutelares (puníveis com perda de mandato), era dado contraditório ao município e participados os factos ao MP.
Disso dá conta Orlando Nascimento, o último inspector-geral da IGAL, que foi demitido por ter criticado a fusão com a IGF. "Na participação ao MP não estamos a fazer o julgamento, mas concluímos que há ali indícios razoáveis de crime", sustentou. "A justiça funciona por patamares: a inspecção detecta o indício, o MP faz as diligências para acusar ou não, para arquivar ou não", argumentou.
O documento em causa tem data de Fevereiro deste ano, e concretiza uma outra orientação interna, assinada pelo inspector-geral de Finanças, José Leite Martins, que exige uma redução das participações ao MP. Em reacção a uma notícia anterior do Negócios, Leite Martins negou estar a dar ordens para reduzir essas participações, mas, ao invés, a tentar "discipliná-las".
Inspectores têm de participar
De acordo com o professor de Direito Penal Pedro Garcia Marques, "os funcionários públicos e inspectores estão obrigados a denunciar a prática de um crime", se tomarem conhecimento dele. "A questão é qual é a margem para comunicar esse crime, mas não cabe ao funcionário fazer essa classificação". Cabe sim "ao MP fazer a investigação". "Não é aceitável que um organismo do Estado faça uma interpretação sofisticada desse dever para decidir se deve haver participação ou não", atesta o especialista Se a IGF fizer essa restrição, "está a violar o dever de denúncia".
Também Rui Patrício entende que "deve haver denúncia quando existam suspeitas, não cabendo a quem está obrigado a denunciar fazer esse juízo sobre a culpa ou sobre qualquer outro elemento da infracção". 'Tenho dificuldade em compreender estas orientações".
Paulo Farinha Alves considera que o documento da IGF "é uma boa ideia", porque tenta disciplinar as participações, mas "se for levado à letra pode levar a que algumas situações não sejam participadas".
ILÍCITOS ONDE OS INSPECTORES TÊM DE PROVAR QUE HÁ CULPA
Os crimes em que a IGF exige a prova de culpa são os que conduzem à perda de mandato. São crimes complexos como a corrupção, prevaricação ou peculato, que exigem a mobilização de meios do Ministério Público. Com o documento da IGF, a investigação desses crimes, e respectiva prova de culpa, pesa nos ombros dos inspectores.
CORRUPÇÃO PASSIVA
Comete corrupção passiva o autarca que receba ou solicite, para si ou para outrém, vantagem patrimonial ou não patrimonial, em troca de cometer algum acto ou omissão contrário aos deveres do cargo que desempenha. É sempre necessário, diz a IGF, provar que há dolo do autarca, ou seja, que o autarca sabia que estava a receber uma vantagem que não lhe é devida.
PARTICIPAÇÃO ECONÓMICA EM NEGOCIO
O autarca que lese os interesses patrimoniais do seu município em seu benefício incorre neste crime. Para poder ser condenado, tem de saber que as vantagens que retira decorrem do cargo que ocupa.
PREVARICAÇÃO
É o crime de que está acusado o ex-secretário de Estado Paulo Júlio. Comete este crime o autarca que intervenha nalgum processo de forma a beneficiar ou prejudicar alguém. É necessário provar que o autarca tinha intenção de o fazer.
PECULATO
Há peculato quando o titular de um cargo público recebe dinheiro ou outra coisa móvel "somente em razão do seu cargo político". A IGF determina que para haver crime tem de haver dolo do autarca.
Queixas "online" são arquivadas se também forem para o Provedor
A Inspecção-Geral de Finanças quer disciplinar não apenas as participações ao Ministério Público, mas também as queixas que recebe de irregularidades em câmaras municipais. Desde que absorveu a ex- Inspecção-Geral das Autarquias Locais (IGAL), entraram na IGF cerca de 600 queixas, participações e exposições. Para reduzir esse número, a IGF adoptou critérios que deixam de fora as queixas que também tenham sido participadas ao Provedor de Justiça.
No documento "Linhas de orientação para análise de queixas, denúncias, participações e exposições", de Julho de 2012, faz-se o diagnóstico da situação: estavam "em curso, à presente data, cerca de 600 queixas, denúncias participações e exposições, estimando-se que cerca de 200 aguardem cumprimento da decisão final". Estas queixas eram analisadas pela ex-IGAL, maioritariamente por via electrónica (através de um formulário disponibilizado na página na Internet).
Três meses depois de absorver a antiga inspecção, a IGF tomou medidas. Por causa do "elevado volume de queixas, denúncias, participações e exposições que passou, por isso, a dar entrada na IGF, quer electronicamente, quer por correio ou em mão", revela-se "necessário definir um conjunto de orientações que, doravante, norteiem a sua apreciação, tendo em vista a uniformização de procedimentos e a implementação de uma maior eficácia e eficiência no seu tratamento".
Entre esses critérios está a participação simultânea ao Provedor de Justiça Se isso acontecer, "o processo deve ser arquivado, devendo a decisão de arquivamento, bem como o respectivo fundamento, serem notificados ao particular", destaca o documento, a que o Negócios teve acesso. Além disso, se os factos descritos na queixa já tiverem sido comunicados às autoridades, o caminho a seguir pela IGF será o mesmo: arquivamento. O procedimento é o mesmo para queixas "genéricas, pouco concretizadas ou ininteligíveis", podendo, nesse caso, pedir-se mais esclarecimentos ao queixoso, se o ilícito for de "especial gravidade".
O Negócios perguntou à IGF se considerava que o Provedor de Justiça está mais habilitado para analisar queixas de ilegalidades nas câmaras, mas não obteve resposta Quando as queixas são aceites e analisadas, recebem uma cor- verde, amarelo ou vermelho - conforme o grau de urgência. BS
CASOS MEDIÁTICOS
Paulo Júlio foi acusado de favorecer um primo e demitiu-se do Governo
Uma inspecção à câmara de Penela, em 2008, teve graves implicações para Paulo Júlio, que era, até Janeiro último, o secretário de Estado da Administração Local. A Câmara de Penela, que Paulo Júlio liderava, foi alvo de uma inspecção por parte da IGAL, que se deparou com um concurso suspeito para a chefia de uma divisão camarária: os critérios do concurso atribuíam preferência a candidatos com licenciatura em História de Arte.
Compareceram apenas dois candidatos, sendo que um deles era primo de Paulo Júlio, sendo, à altura, funcionário da câmara de Penela, noutro departamento. Paulo Júlio era ainda o presidente do júri do concurso, que atribuiu o lugar ao primo. A IGAL inspeccionou o município e, em 2011, decidiu participar ao Ministério Público esse concurso, por entender que houve irregularidades.
O Departamento de Investigação e Acção Penal (D1AP) de Coimbra deu seguimento ao processo e notificou Júlio de que está acusado de prevaricação por causa do concurso de 2008. O Ministério Público "entende que deveria ter sido aberto a outros licenciados para lá daqueles na área científica constante do aviso". Paulo Júlio demitiu-se do Governo dias depois de o caso ter sido tomado público.
Macário Correia condenado por desrespeitar instrumentos urbanísticos
O actual autarca de Faro foi condenado a perder o mandato por decisões que tomou enquanto presidia ao vizinho município de Tavira. Em 2008, a IGAL conduziu uma inspecção a Tavira e concluiu que Macário Correia tomou várias decisões em desrespeito de pareceres dos serviços e ao arrepio dos instrumentos de gestão territorial (Plano Regional e de Ordenamento do Território do Algarve) e de ordenamento urbanístico de Tavira (Plano Director Municipal).
Em causa estão a construção de duas moradias, de piscinas e o projecto do Centro de Incubação Tecnológica Empresarial Ambiental, que depois acabou por não ir para a frente. Na primeira e segunda instância, Macário foi absolvido da prática de crime, mas o Supremo Tribunal Administrativo e, mais recentemente, o Tribunal Constitucional vieram considerá-lo culpado, porque os ilícitos correspondem à "forma mais grave de violação do vigente quadro legal urbanístico".
Macário Correia não se conformou com a decisão e justificou os seus actos com o facto de se ter tratado de "actos de pequena dimensão", como o uso, pelos proprietários, de um estábulo e um armazém para habitação. Macário também tem dito que esses actos não foram declarados ilegais pela Justiça.
Fátima Felgueiras esteve para perder mandato por aprovação de loteamento
Fátima Felgueiras começou a sua saga judicial em 2000, quando viu alguns dos seus colaboradores entrarem em rota de colisão consigo.
Esses funcionários denunciaram ilegalidades, entre as quais o célebre "saco azul", que foram então remetidas para a Inspecção-Geral da Administração do Território (a designação IGAL passou a ser usada em 2007). A IGAT produziu um relatório em que concluía que Fátima Felgueiras havia retirado benefícios do loteamento de um terreno na freguesia de Pombeiro, no município de Felgueiras, a que presidia.
O terreno foi comprado pelo ex-marido de Fátima Felgueiras, que teve conhecimento do facto. Posteriormente, Fátima Felgueiras aprovou o licenciamento e o loteamento do território. Depois da remessa do relatório ao Ministério Público, os procuradores acusaram Fátima Felgueiras de 23 crimes, entre eles cinco de participação económica em negócio, seis de corrupção passiva para acto ilícito e quatro de abuso de poderes.
A ex-autarca fugiu, em 2003, para o Brasil, quando soube que lhe ia ser decretada prisão preventiva. Em Julho de 2011, Fátima Felgueiras foi absolvida de todas as acusações (duas delas porque os crimes prescreveram, entretanto).
Bruno Simões | Jornal de Negócios | 11-03-2013
Comentários (12)
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Ca burros
Nota do Administrador
Sr. Comentador, o lapso foi meu na transcrição do título. Peço desculpa pelo mesmo.
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Terei sido eu que li mal ou avaliou mal a questão?
Não me parece que esteja em discussão de é uma ilegalidade administrativa ou ilegalidade, antes a obrigação estipulada aos inspectores de, perante uma ilegalidade que configure a possível prática de um crime, averiguar e concluir de imediato se existe ou não dolo do autarca.
Se li bem, não caberá apenas aos inspectores a denúncia, competindo ao OPC indicado pelo MP a averiguação dos factos e do animus dos autores do eventual crime?
Será que não vimos já isto noutro lado, com os denunciantes a serem posteriormente condenados por violação do sigilo profissional ou por violação de comando hierárquico legítimo?
De forma mais ou menos sibilina, a decisão não é mais do que uma permanente ameaça sob os inspectores, convidando-os a estarem sossegados, pois os senhores autarcas são pessoas de bem, e não devem ser incomodados. Acredito que a esmagadoras maioria o seja, mas como em todas as profissões, há bons e há um diminuto número de maus.
Não será assim, ou terei mesmo lido mal?
Respeitosamente
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E se as resmas de expedientes são assim tão infundadas também não custa muito ler e chegar a uma decisão célere... não vejo problema, vejo é certos magistrados do MP sem competência e perfil para exercerem funções.
Nunca tive qualquer problema em receber denuncias, sejam elas fundadas ou não da prática de crime, porquanto, se "roça" no crime investiga-se, caso contrario, arquiva-se!
Sabe qual é o problema é que a corrupção já se tornou como o "furto formigueiro", ou seja, não tem dignidade penal.
José Pedro Faria (Jurista) - Completo disparate
Desde logo, parece-me que o tal despacho, ou seja lá o que for, se contiver aquilo que aqui se refere, é manifestamente ilegal. Existe lei expressa contrária, não me parece haver muito a fazer relativamente a isto.
O que os inspetores têm a obrigação de fazer é demonstrar a existência de indícios suficientes da existência de crime. Determina a lei: (artigo 242.º, n.º 1, alínea b) do CPP) que "[a] denúncia é obrigatória, ainda que os agentes do crime não sejam conhecidos [...] [p]ara os funcionários, na acepção do artigo 386.º do Código Penal, quanto a crimes de que tomarem conhecimento no exercício das suas funções e por causa delas" (sublinhado meu).
Portanto, uma vez que existam os tais indícios suficientes... a denúncia é obrigatória, independentemente do que se diga em circulares ou despachos internos! Obviamente, não compete aos inspetores provar a existência de culpa!
O disparate é de tal modo evidente, que me custa a crer que no dito documento esteja escrito aquilo que aqui se diz.
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1-Quer essas ilegalidades sejam graves ou não, e determinem ou não a perda de mandato ou a dissolução do órgão autárquico, o membro do governo está obrigado a remeter ao MP competente os relatórios devidamente fundamentados das acções inspectivas nos quais se apure a existência de factos ou omissões tidos por ilegais, mais as alegações e documentos apresentados pelos visados em se tratando de caso que possa determinar a perda de mandato ou a dissolução do órgão. Assim o diz a Lei 27/96 no seu art 6º:
Os relatórios das acções inspectivas são apresentados para despacho do competente membro do Governo, que, se for caso disso, os remeterá para o representante do Ministério Público legalmente competente. Estando em causa situações susceptíveis de fundamentar a dissolução de órgãos autárquicos ou de entidades equiparadas, ou a perda de mandato dos seus titulares, o membro do Governo deve determinar, previamente, a notificação dos visados para, no prazo de 30 dias, apresentarem, por escrito, as alegações tidas por convenientes, juntando os documentos que considerem relevantes.
2-As acções para perda de mandato ou de dissolução de órgãos autárquicos ou de entidades equiparadas são da competência dos tribunais administrativos de círculo e seguem a tramitação processual urgente prevista na referida Lei 27/96, sendo interpostas pelo Ministério Público, por qualquer membro do órgão de que faz parte aquele contra quem for formulado o pedido, ou por quem tenha interesse directo em demandar, o qual se exprime pela utilidade derivada da procedência da acção (Lei 27/96, art 11º).
3-Nessa acção especial pode ser produzida e requerida prova (Lei 27/96, art.15º).
4-A apreciação da ilegalidade das condutas em que se fundamente a acção especial para perda de mandato, nos termos da Lei 27/96, de 1 de Agosto, designadamente no caso de violação culposa de instrumentos de gestão e ordenamento do território ou de planeamento urbanístico válidos e eficazes [art. 9/c)], é feita nessa mesma acção especial urgente, que não depende, assim, da prévia declaração judicial daquela ilegalidade (como se decidiu no recente acórdão do STA de 20.06.2012/Proc 027/12-caso Macário Correia CM de Faro).
5-Assim, o Estado, através dos tribunais, deve participar ao MP competente todos os indícios de ilegalidade que conheça, acompanhados das respectivas provas, sendo os tribunais quem decidirá se se verificam ou não as ilegalidades apontadas nos relatórios de inspecção, bem como se existe ou não culpa grave, causa justificativa do facto ou causa de exclusão de culpa dos agentes, aplicando ou não a sanção da perda de mandato ou de dissolução do órgão autárquico.
6-Quaiquer actos que o governo se arrogue que excluam ou limitem este poder de decisão do tribunal serão nulos por vício de usurpação de poder, sendo esta nulidade invocável por qualquer interessado a todo o tempo (arts. 133º e 134º do Código do Procedimento Administrativo).
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Chamo a atenção que estão em causa duas coisas diferentes: uma é a perda de mandato ou de dissolução de órgãos autárquicos que não têm necessariamente origem em crime, e a descoberta de indícios de crime, seja ele qual for.
Se os inspetores verificam a existência de indícios de crime, devem participar de imediato ao MP, em cumprimento do disposto no CPP. O envio de relatório não prejudica esta obrigação.
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CLARO, é uma forna habilidosa de impedir mais casos Macário. Estou mesmo a ver os telefonemazinhos para os xôs inspetores, já para não falar nos meios de investigação altamente limitados qwue as inspeções podem usar. Daí que jamais se consiga "provaR2 alguma coisa.
Porém, pergunto: a quem cabe investigar os crimes? E o art. 242.º do CPP?
Perdeu-se a vergonha neste país!
Violação das Regras Urbanísticas e Corrupção
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