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REVISTA DE 2013

Mouraz Lopes: «Há muitos anos que a Justiça vive em austeridade»

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O líder sindical dos juizes reivindica «independência financeira e orçamental» para os tribunais. E avisa que os cortes em 2014 põem em causa a «dignidade dos órgãos de soberania».

- Os juízes decidiram, em assembleia-geral da associação sindical, apelar à intervenção do Presidente da República (PR) para assegurar verbas para o funcionamento dos tribunais. Que efeito prático esperam?
- Não vamos pedir ao PR que aumente o orçamento da Justiça, nem ele tem essas competências. O que se pede é que sensibilize a Assembleia da República (AR) e o Governo para resolverem problemas manifestos de insuficiência orçamental. E não me refiro apenas à crise actual: há muitos anos que a Justiça vive em austeridade. Em 2014, a desorçamentação é maior e põe em causa o funcionamento de órgãos constitucionais, como o Conselho Superior da Magistratura (CSM).

- Pode dar exemplos?
- Desde logo, o corte de 6% no orçamento do CSM. A certa altura do ano, não haverá dinheiro para pagai" as deslocações dos inspectores judiciais. Outro exemplo: o CSM tem neste momento duas viaturas uma com 15 anos e outra, ao serviço do vice-presidente, cujo leasing termina agora. Neste momento, não há orçamento para garantir um novo leasing. Estamos a falar de um órgão que gere a magistratura em Portugal. Não são meios luxuosos, mas despesas de exercício diário de um órgão de soberania. Não podemos comparar o CSM com uma repartição ou direcção-geral. Outro exemplo: o CSM não desenvolve actividade internacional (reuniões de cooperação judiciária, etc.) porque não tem verba desde Abril. Se um funcionário de qualquer ministério tem de ir todas as semanas a Bruxelas, vai sem qualquer problema. Esta penúria e miserabilismo orçamental têm de acabar. Julgo que o PR foi alertado para esta situação, porque o próprio CSM foi recebido pela primeira vez por Cavaco Silva esta semana e terá manifestado estas preocupações juntamente com as decorrentes do sistema remuneratório dos juizes. Quando a quarta figura do Estado recorre à primeira figura do Estado para esse efeito, isso é suficientemente grave para os órgãos constitucionais perceberem que algo está mal.

- Mas todos os portugueses estão a fazer sacrifícios.
- Não estamos a pôr-nos de fora dos sacrifícios. Queremos que os juizes tenham um estatuto que permita exercer funções com a dignidade que tem de ter. sem andarem todos os anos a pedir junto dos outros poderes para não lhes reduzirem os ordenados. O que está em causa é a dignidade dos órgãos de soberania. A ministra compreende a gravidade da questão, mas não sei se o resto do Governo a compreende. Não sei se compreendem o significado de a quarta figura do Estado recorrer à primeira para os efeitos que referi. Isto nunca aconteceu.

- Por que não avançam para a greve, como os magistrados do MP?
- Os juizes quiseram dizer 'estamos no limite', 'não paramos'. Esperamos, no entanto, que a presença de tantos juizes juntos e o que se passou na assembleia-geral permita que os outros poderes vejam o que se está a passar.

- Mas foi aprovada uma deliberação para criar um fundo de greve.
- Foi aprovada uma deliberação que dá à associação a capacidade para, se as coisas se agravarem, desencadear os procedimentos para fazer greve.

- A desorçamentação é o único problema?
- As questões fundamentais que suscitam esta indignação dos juizes são a desorçamentaçâo do sistema de Justiça, o estatuto remuneratório, as pressões inadmissíveis que os tribunais têm sofrido e, a gota de água, a reforma do mapa judiciário, que prevê uma redução do número de juizes do quadro, sem fundamento.

- O orçamento é inconstitucional?
- Os cortes previstos para os funcionários públicos, na parte que ultrapassa os 10% e que vão além do limite que o TC fixou em 2011, são, no nosso entendimento, inconstitucionais para todos. Outra questão, que diz respeito só aos juizes, é a inconstitucionalidade do carácter definitivo dos cortes para a classe, quando para os funcionários públicos são transitórios. Os cortes nas remunerações não podem ser mais gravosos para nós do que para os outros.

- Como explica aos portugueses que um juiz que recebe três mil euros por mês ganha mal?
- Um juiz em inicio de carreira ganha 1.300 euros líquidos, mais 620 euros de subsídio de renda de casa. Com 10 anos de carreira, ganha cerca de 2.300 euros líquidos. Um conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça (o topo da carreira) ganha à volta de três mil euros líquidos, mais 620 euros de subsídio. Em relação ao salário mínimo nacional, é evidente que é muito. Em relação ao salário médio dos portugueses, provavelmente é um salário razoável. Mas não podemos fazer demagogia. Estamos a falar de órgãos de soberania que não são eleitos. Não 'estamos' juizes durante quatro anos, como os titulares de cargos políticos ou os membros dos conselhos de administração das grandes empresas públicas. Temos uma carreira com um regime de exclusividade que mais ninguém tem: não podemos exercer qualquer outra actividade remunerada. As normas internacionais que vinculam Portugal são muito claras em impor a existência de um regime remuneratório que garanta suficientemente a independência e a estabilidade das funções judiciais.

- Que alterações defendem para o estatuto dos juizes?
- Temos de ter um estatuto constitucionalmente blindado, que não permita intervenções de nenhuma natureza, nomeadamente política. Estamos em colisão com alguns compromissos internacionais que Portugal assumiu no que respeita à independência financeira dos tribunais. Os tribunais devem ter independência financeira e orçamental: o estatuto dos juizes deve consagrar um mecanismo que permita um rendimento digno e adequado, e que não seja passível de ser constantemente alterado pelos outros poderes. É importante que haja um compromisso da AR no sentido de isto ser feito rapidamente.

- Condenaram «as pressões sobre o TC». Mas, em 2010, quando o Governo faz os primeiros cortes salariais que o TC não chumbou a associação sindical criticou.
- Só interviemos quando as coisas se tornaram 'obscenas', nomeadamente quando titulares de outros poderes políticos pressionaram directamente o TC - como o presidente da Comissão Europeia, a senhora Lagarde...

- Mas é pressão dizer que, se estas medidas forem chumbadas, terão de ser substituídas por outras?
- Não é isso. O que foi dito é que a responsabilidade de tudo o que está a acontecer é do TC e se este não decidir em certo sentido será o caos. Uma coisa é não estarmos de acordo com as decisões dos tribunais, outra é dizer 'ou decidem assim, ou então...' - isto é pressão!

- Concorda que os juizes do TC possam ter uma reforma ao fim de 10 anos?
- Para o TC, podem ser nomeados juizes de carreira ou juristas de reconhecido mérito. Estes, durante 9 anos, exercem funções em exclusividade, prescindindo da sua actividade profissional e da sua carreira, e para isso tem de haver alguma compensação. Se é através de uma pensão ou de outra forma, sinceramente isso não me preocupa muito. Também nesta matéria não devemos entrar em discursos demagógicos.

- Os juizes não têm uma quota-parte de responsabilidade na má imagem da Justiça?
- É evidente que a imagem dos tribunais é decorrente da actuação de quem lá está (juizes, MP, advogados) e sobretudo da maior ou menor celeridade da resposta. Mas os juizes têm uma grande desvantagem: são responsáveis por tudo o que se passa num processo. Às vezes, há alguma injustiça na forma como se vê a responsabilidade dos juizes. Temos a nossa quota-parte de responsabilidade nesta imagem negativa, mas não certamente a maior.

'Pouco tem mudado no combate à corrupção'
Voltar à estaca zero na reforma do mapa judiciário foi uma decisão que «não teve radonalidade». Na corrupção, há apenas «boas intenções».

- Quantos juizes ficam sem lugar nos quadros dos tribunais, segundo a proposta do Governo de regulamento do mapa judiciário?
- Ainda não concluímos o estudo, mas mantemos a estimativa: entre 91 e 226. Ainda não conseguimos perceber o critério usado na proposta, sendo que os números avançados pela senhora ministra são os dos quadros que existiam há 14 anos nos tribunais. Vamos provar que o que está na proposta não tem correspondência com a realidade e as necessidades. E haverá até tribunais - como os do Comércio, da Regulação e da Propriedade Intelectual - em que serão precisos até mais juizes do que os que lá estão agora. Na Justiça há flutuações na 'procura' e na 'oferta'. Por exemplo, agora há uma maior 'procura' nos tribunais do Trabalho e do Comércio. Os quadros dos tribunais têm de ter isso em consideração. Mas não podemos é ser flexíveis como está previsto na proposta do Governo, em que praticamente 10% dos juizes passariam a ser 'flexíveis' e sujeitos a andar de comarca em comarca.

- Esta reorganização faz sentido ou preferia a solução do anterior Governo?
- Claro que faz. Só peca por tardia e porque se perderam todos os estudos já feitos, por meras questões políticas. Houve uma reforma estudada durante seis anos, que foi aprovada e que entrou em vigor parcialmente (temos hoje a funcionar as três comarcas-piloto: Baixo Vouga, Grande Lisboa Noroeste e Alentejo Litoral) e depois voltámos à estaca zero. Esta decisão, de racionalidade, não teve nada! O modelo anterior baseava-se nas NUTS [Unidades Territoriais Estatísticas] e este agora é nos distritos. Sempre dissemos a este Governo que a opção por umas ou por outros é-nos indiferente. Os cidadãos é que não podem ser prejudicados. Tem de haver um mínimo de coerência e o que temos é o contrário: uma lei que divide o território da Justiça com base nos distritos, e depois outra, publicada um mês depois, que criou regiões e comissões intermunicipais, agregando os municípios em função das suas especificidades (e não dos distritos). A partir de 2014, teremos situações caricatas: há concelhos que integram um distrito e uma comarca, mas pertencem a uma comunidade intermunicipal diferente.

- Quando o mapa judiciário entrar em vigor, o que se prevê para finais de 2014, não teme o caos?
- Sempre dissemos que a reforma tinha de ser faseada e isso está previsto. Outra coisa é saber se há meios suficientes, capacidade técnica e financeira para a implementar. Não sei se há. O que sei é que o CSM precisa de um sistema informático para gerir as colocações dos juizes segundo os critérios do novo mapa judiciário, que custa 200 mil euros, e esta verba não está assegurada no OE-2014.

- Que balanço faz do mandato da ministra da Justiça?
- Esta ministra teve a virtude de virar o ambiente de crispação que existia em relação à Justiça por parte do poder político. Fez logo questão de salientar que respeita a independência das magistraturas e dos tribunais. Não houve até agora falta de diálogo. Depois, só o facto de ter implementado o novo Código de Processo Civil é positivo. A reforma do mapa judiciário... é esperar para ver. Na acção executiva, limparam-se as estatísticas, o que já não é mau. Veremos se as alterações à lei resolvem o problema, mas há já sinais de que pode resultar.

- Alguma coisa mudou no combate à corrupção?
- Vejo, desde logo, boas intenções, embora discorde da criação do crime de enriquecimento ilícito. De resto, confesso que não tenho visto muita coisa mudar. Só que isto não é um problema de leis substantivas. É preciso gestão adequada na prevenção e na investigação. São precisos meios técnicos, pessoas especializadas nestas matérias e definição de estratégias. Continua a não haver quadros suficientes na Polícia Judiciária e no Ministério Público, nem peritos, ao que me dizem. Portanto, nesta parte não vejo grandes mudanças.

Ana Paula Azevedo e Sónia Graça | Sol | 15-11-2013

Comentários (9)


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Não há dúvidas de que a corrupção tem que ser combatida FEROZMENTE (terá de ser uma guerra sem quartel) e erradicada.

Mas, enquanto isso não passa de uma quimera, embora não devamos desprezar esse combate e ir fazendo as melhorias que se impõem (nas leis e na filosofia dos aplicadores do direito), para já, deixemo-nos de falar da corrupção por tudo e por nada, pois apenas serve para distrair quanto a outras questoes concretas (e que há muito ultrapassaram o estadio da abstração onde ainda se encontra o combate à corrupção) e muito mais resolúveis a curto e médio prazo.


QUanto à pparte da entrevista que interessa, não´são só os cortes de 2014, mas sim os roubos que têm vindo a ser feitos às magistraturas, polícias e funcionáriosjudiciais, não só com os cortes sucessivos nos vencimentos como também com a exclusão dos SSMJ (sobretudo tendo em conta os porquês de essa exclusão ter sucedido). E infelizmente, a ASJP (embora não apenas no consulado do Dr. Mouraz Lopes, é certo) nem sempre tem atuado em conformidade, pecando manifestamente por defeito.
Zeka Bumba , 15 Novembro 2013
...
Já aqui tenho dito, coloquem o Zeka a comandar as tropas que isto vai para a frente...o homem é que sabe...smilies/grin.gif
Carlos Pacheco , 15 Novembro 2013
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É uma pena que o Dr. Mouraz Lopes não veja o problema no seu todo, reduzindo-o quase à necessidade de "dignificação" da função judicial.
Valmoster , 15 Novembro 2013
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"Magistrado Judicial roubado pelo Estado no seu salário (único rendimento legalmente possível),
procura trabalho (em horário pós laboral) em escritório de advogado, imobiliária e demais empresas privadas, para consultadoria jurídica ou serviços equivalentes.
Solicita-se sigilo e urgência pois tenho mulher desempregada, filhos para sustentar e casa para pagar ao banco."
Contribuinte espoliado , 15 Novembro 2013
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Boa Carlos Pacheco. E descanse homem, que sempre se arranjará um lugar de Básico para si cás nas tropas do Zekasmilies/grin.gifsmilies/grin.gifsmilies/grin.gifsmilies/grin.gifsmilies/grin.gifsmilies/grin.gifsmilies/grin.gifsmilies/grin.gifsmilies/grin.gifsmilies/grin.gifsmilies/grin.gif
Zeka Bumba , 16 Novembro 2013
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É preciso é você comandar, saber comandar é diferente que opinar...isto precisava de uma mudança...não sei se estaria à altura de comandar como tá de opinar...LOL.
Carlos Pacheco , 16 Novembro 2013
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Caro contribuinte expoliado,
É azar ser magistrado judicial, porque o Estado e as câmaras municipais continuam a ter uns ajustes directos em consultoria jurídica, ao que se sabe muito geitosos e com horário flexível. E, quem sabe, com um empenhosinho talvez conseguisse entrar nesses santuários partidários, onde certos advogados nem se dão pela crise de tanto acumular com Estado e autarquias locais, com várias autarquias, com ensino universitário e Estado e autarquias, com empresas públicas, com formação a funcionários públicos, etc. etc.etc. .

Maria do Ó , 16 Novembro 2013
...
Ó Maria do Ó mas é isso que eu falo há imenso tempo...quando dizem advogados cuidado! Há 2 classes distintas que a maior parte dos juízes ignora, a justiça em geral ignora e tem tudo no mesmo saco.
As sociedades de advogados proliferam nos seus lucros e digo isto com base na base.gov e conhecimento de pessoas que trabalham com ajuste directo.
Vergonhosos os valores pagos ao Júdice e à Sérvulo...A Sérvulo é a RTP, Câmaras...marcha tudo...Marcha tudo...
Vergonha dos ajustes directos.
Carlos Pacheco , 16 Novembro 2013
A Asjp...
que se preocupe com as questões essenciais dos juízes (associados ou não, é indiferente), com aquilo que o contribuinte espoliado refere - A MAIORIA DOS JUÍZES NÃO têm dinheiro para pagar as suas despesas mensais, isto é, para sobreviverem bem como a sua família - EM VEZ de se preocupar, como se inicia a entrevista, com o CSM.
É do conhecimento público (consulte-se os sites do STJ) que o CSM está a governar-se bem com as multas que os sres. inspectores estão a aplicar nos processos disciplinares a inúmeros juízes por dá cá aquela palha.
Não se admirem da debandada geral de juízes a pedirem licença sem vencimento ou mesmo que provoquem a aposentação compulsiva, assim já podem ser advogados ou juristas ou outra profissão ou emigrarem para não serem piegas...e sustentarem-se e à família com alguma dignidade.
Não se pode andar com pezinhos de lã com quem não sabe o que é ser juiz, conversas e balelas com o poder político para quê...
O País está afundado porque não há quem investigue e apure responsabilidades na má gestão dos dinheiros públicos - BPN, Swaps, ppps, educação, saúde, perdas em mais de 3 mil milhões de euros por gestores da seg soc , fundações, é um rol que nunca mais acaba.
É pena não termos a fibra dos irlandeses senão estavam todos a contas com a justiça.
E alguém ontem na CS a dar os parabéns aos irlandeses, o principal culpado do afundanço dos portugueses. Já não sabem o que é ter vergonha...

... , 16 Novembro 2013

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