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REVISTA DE 2013

Injusta causa

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Depois de dois orçamentos chumbados no Tribunal Constitucional, por violação de princípios fundamentais do Estado de Direito no corte de salários e de pensões, o Governo optou por apresentar à margem do Orçamento a sua proposta de novos cortes orçamentais através de despedimentos arbitrários na função pública.

Não adianta disfarçar a razão desta táctica legislativa: o próprio Governo suspeitava que a sua proposta era inconstitucional. Houvesse no Governo um pouco menos de cegueira ideológica ou um pouco mais de competência e essa suspeita seria uma certeza. Afinal, foi corroborando a opinião largamente maioritária entre os constitucionalistas que os juizes decidiram, por unanimidade, que a proposta do Governo era inconstitucional.

A tendência do Governo para entrar em rota de colisão com a Constituição não constitui uma novidade, nem uma surpresa. O que surpreende é a insuperável incompetência com que essa tensão tem sido gerida.

É certo, o primeiro-ministro diz que não tem problemas com a Constituição - só tem problemas com a interpretação que dela fazem, pelos vistos de forma unânime, os insensatos juizes do Tribunal Constitucional.

Acontece que esse binómio não existe: de um lado, a Constituição, em forma pura; do outro, as suas interpretações. O que há é a Constituição, tal como interpretada. E sendo sem dúvida legítimas - no plano jurídico e no plano político - diversas interpretações da mesma Constituição, compete ao Tribunal Constitucional, na sua jurisprudência, fixar, de forma vinculativa na nossa ordem jurídica, a interpretação válida da Constituição.

Dito de outra forma: se o primeiro-ministro tem problemas com a interpretação da Constituição fixada pelo Tribunal Constitucional, é porque tem problemas, de facto, com a própria Constituição. Logo que foi eleito líder do PSD, em 2010, Passos Coelho, no encerramento do XXXIII Congresso do seu partido, propôs uma revisão constitucional para impedir, e cito, "que o Estado nos enfie pela goela abaixo o social que cada Governo quer".

Pouco depois, explicou que pretendia "reformar amplamente o sistema", o que, segundo ele, e cito de novo, "com esta Constituição não é possível" (JN, 21 5-2010). Chegou mesmo a apresentar um projecto de revisão constitucional, que depois abandonou.

E nesse projecto propunha eliminar do art° 53º da Constituição a proibição do despedimento "sem justa causa", substituindo-o pela mera proibição do despedimento "sem razão legalmente atendível". Ficou claro, desde então, o que Passos Coelho pretende, tanto para o sector público como para o sector privado: viabilizar despedimentos que não cabem no amplo conceito constitucional de "justa causa", ou seja, viabilizar despedimentos por "causas injustas" ou arbitrárias.

O que não se compreende é que Passos Coelho, tendo desistido da sua revisão constitucional (certamente inviável, no plano político), ainda assim mantenha o seu programa legislativo contra os direitos constitucionalmente protegidos. Consequência: é cada tiro, cada melro - e o resultado não podia ser outro.

E não se diga que o Tribunal Constitucional não leva em devida conta a situação financeira do País: este é o mesmo Tribunal que, atenta precisamente a situação financeira, permitiu reduções salariais na função pública desde 2011, autorizou a contribuição extraordinária de solidariedade e se expôs à incompreensão geral quando decidiu - sem que o Governo, aliás, o tivesse pedido - diferir para o ano seguinte os efeitos da inconstitucionalidade do corte dos subsídios em 2012. Só que há limites para tudo e não pode tolerar-se que a Constituição seja suspensa para viabilizar um programa ideológico radical de resposta à crise com desprezo pelos princípios elementares do Estado de Direito.

O caso dos despedimentos na função pública é exemplar. Por cinco vezes - em sucessivos acórdãos proferidos em 1986, 1992, 2003, 2001 e, agora de novo, em 2013 - o Tribunal Constitucional explicou, pacientemente, que a Constituição não impõe o "emprego para a vida" no Estado ou, mais exactamente, que "a vitaliciedade do vínculo laborai público não encontra assento constitucional".

Ou seja: a Constituição não proíbe os despedimentos na função pública. Mas o Tribunal explicou também que o emprego público não está excluído da proibição constitucional do despedimento sem justa causa. Sucede que o Governo propôs para o sector público um regime mais gravoso do que o do sector privado, em que o despedimento passaria a ser possível não por razões disciplinares ou verdadeiramente objectivas mas em função de arbitrariedades que não podiam caber, de forma alguma, no conceito constitucional de justa causa.

Em suma, o Governo pretendia despedimentos na função pública por causas injustas. Travar tamanha injustiça em matéria de direitos fundamentais só pode ser uma decisão juridicamente acertada - e um manifesto sinal de bom senso.

Pedro Silva Pereira - Jurista | Diário Económico | 06-09-2013

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