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REVISTA DE 2013

Contratos para cumprir e contratos para violar

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Pacheco Pereira - A questão que se segue pode ter um tratamento jurídico, mas não é esse tratamento que me interessa. Pode ter um tratamento de ciência política, mas não é esse tratamento académico que me interessa. O único tratamento que me interessa é um tratamento que se pode chamar "civilizacional", cultural no sentido lato, político no sentido restrito, de escolha, visto que prefiro viver numa sociedade assente em contratos, confiança e boa-fé, do que numa selvajaria em que impera a lei do mais forte.

Este é portanto um artigo muito conservador, contra o "revolucionarismo" desleixado e impensado do Governo e do poder actual, que semeia tempestades que deviam repugnar qualquer cidadão que prefere viver numa democracia onde impera a lei e o direito e onde não há "estados de excepção" unilateralmente proclamados pelo poder executivo contra o poder judicial.

A questão tem a ver com a "confiança" e tem sido discutida à volta da decisão do Tribunal Constitucional. Chamam-lhe "o princípio da confiança", e os juristas diriam que está implícita na noção latina de que pacta sunt servanda, os contratos são para cumprir, a que eu acrescentaria a noção de que essa é também uma base do funcionamento de uma sociedade democrática e de uma economia de mercado. A ideia de que os pactos devem ser cumpridos, ou seja que a lei os deve proteger, foi um dos grandes adquiridos na Holanda, que permitiu o aparecimento dessa grande invenção que foi a "companhia", ou seja, o capitalismo moderno.

A tempestade originada pela decisão do Tribunal Constitucional equipara a "confiança" a um "direito adquirido", uma expressão que ganhou hoje, na linguagem do poder, a forma de um qualquer vilipêndio. Segundo essa linguagem, repetida por muito pensamento débil na comunicação social, os "direitos adquiridos" não são mais do que privilégios inaceitáveis, que põem em causa a "equidade". (Se parassem para pensar veriam que não há equidade nenhuma, e meditariam um pouco sobre por que razão se fala de equidade e não de igualdade.

Mas essa questão da "equidade" fica para outra altura.) Claro que os "direitos adquiridos" são essencialmente do domínio do trabalho, dos direitos do trabalho e dos trabalhadores, activos e na reforma, e não se aplicam a outros "direitos" que esses são considerados intangíveis na sua essência.

Por exemplo, os contratos com as PPP e os swaps, ou a relação credor-devedor, são tudo contratos que implicam a seu modo "direitos adquiridos", mas que, pelos vistos, não podem ser postos em causa.

O meu ponto neste artigo é que o Governo e os seus propagandistas, ao porem em causa os "direitos adquiridos" quando eles se referem a pensões, salários, direitos laborais e emprego, estão também a deslegitimar os outros contratos e a semear a "revolução". Assim mesmo, a "revolução", defendendo uma sociedade em que o Estado e, mais importante, a lei ou a ausência de lei em nome da "emergência financeira", não assegura qualquer "princípio de confiança", ou seja, os pactos feitos na sociedade, pelo Estado, pelas empresas, pelas famílias, pelos indivíduos.

Esta lei da selva é, espantem-se ó defensores da ordem, outro nome para a "revolução", a substituição do Estado de direito e da lei pela força, seja a da rua, seja a do poder sem controlo, seja a da imposição arbitrária assente em decisões conjunturais que passam por cima da "confiança" contratual que permite uma sociedade equilibrada, pacífica, com institucionalização dos conflitos, com mediação dos interesses, e com o funcionamento... de uma economia de mercado.

Ao porem em causa o cumprimento dos contratos com os mais fracos, os que menos defesa têm, eliminando qualquer "princípio de confiança" ou "direito" livremente adquirido entre as partes, abrem o caminho para que se pergunte por que razão é que os contratos das PPP são "blindados" (ou seja são "direitos adquiridos") e não podem ser pura e simplesmente expropriados, em nome da "emergência financeira". Eu não estou a defender essa expropriação, mas apenas a dizer que se o Governo e a sua máquina de repetidores entende que pode confiscar salários, empregos, carreiras, horas de trabalho, e direitos legalmente adquiridos pelas partes, e aí não se preocupa com a "blindagem" (que foi o que o Tribunal Constitucional garantiu, mesmo que precariamente), torna igualmente legítimo que se defenda o confisco da propriedade e dos contratos, a começar por aqueles que unem credores e devedores, ou partes num swap ou numa PPP. Ou seja, um governo que assim actua para os mais fracos comporta-se do mesmo modo dos que querem "rasgar o memorando".

Ora, eu sou a favor de que se cumpra o memorando, realisticamente adaptado à mudança de circunstâncias, que se negoceiem e não se confisquem as PPP, mas que ao mesmo tempo se tenha a mesma atitude em relação aos outros contratos, procedendo também aí a verdadeiras negociações e não a diktats, e procurando soluções que possam manter a "confiança", como seja, por exemplo, encontrar modos de transição, diferenciações entre os contratos do passado e do presente, avaliação de custos e situações.

Ora é isto que o Governo desde o dia um do seu mandato nunca fez, por ignorância, incompetência, dolo e ideologia. Tomou um caminho único, defendeu-o como único, acrescentou problemas novos aos que já tinha, começou arrogante e acabou a andar para trás, para a frente, para o meio e para cima, tentando remediar o que tinha estragado. Sempre que contrariado quis vingar-se, garantindo que os que uma decisão constitucional protegia iriam pagar um preço ainda maior, se possível, ou servir de pretexto para punir todos. E desde sempre mostrou desprezo pela lei constitucional, porque isso lhe permitia soluções mais fáceis, mais imediatas, até porque os seus alvos eram os que menos poder tinham. O resultado foi romper o tecido social como ele nunca tinha sido rompido desde o 25 de Abril, semeando a discórdia e a divisão, sem qualquer resultado adquirido e sustentável.

Eu ouço o rumor das objecções. Que não são a mesma coisa, que se trata de coisas de natureza diferente, propriedade e salários, emprego e contratos, que os tribunais decidiriam contra o Estado, levando a indemnizações muito maiores do que os ganhos, de que secariam as fontes de financiamento externo, etc., etc. Tudo verdade, mas tudo também verdade para o direito de não ser despedido sem justa causa, ou de não ver a sua reforma cortada retroactivamente.

É por isso que os nossos semeadores de cizânia e de "revolução", da força, de uma sociedade dúplice em relação aos contratos que cumpre ou não cumpre, deviam ponderar nas palavras que originaram o pequeno escândalo, habitual nas redes sociais, vindas de um jovem deputado comunista que ainda não aprendeu a "linguagem de madeira" dos comunistas actuais: "A corja que despreza a Constituição que se ponha a pau. É que se o meu direito à saúde, educação, pensão, trabalho, habitação, não vale nada, então também os seus direitos à propriedade privada, ao lucro, à integridade física e moral deixam de valer! E nós somos mais que eles".

O homem foi tratado de "besta", "hitleriano", "aspirante a ditador", "parecido com os fascistas", tudo isto ipsis verbis. Mas o que incomodou na frase foi que ela contém implicitamente uma enorme verdade: é que o "vale tudo" só para alguns é infeccioso para os outros.

Ou seja, por que razão é que tenho que aceitar que o Governo me pode confiscar o meu salário e despedir sem direitos, por livre arbítrio de um chefe de uma repartição, ou diminuir drasticamente a minha pensão, agora que já não existo para o "mercado de trabalho" e sou completamente dependente, ou condenar-me ao eufemismo do "desemprego de longa duração", ou seja tirar-me muito mais do que 60% ou 70% da minha "propriedade", que não são acções, nem terras, nem casas, nem depósitos bancários, e quem tem tudo isso não pode ver a sua propriedade confiscada num valor semelhante ao que eu perco? E aí, ironia das ironias, teríamos o Tribunal Constitucional, com os aplausos do outro lado, a defender a propriedade e a condenar o confisco, como deve fazer.

É por isso que estes meninos estão a brincar com o fogo e depois gritam que se queimaram.

José Pacheco Pereira | Público | 07-09-2013

Comentários (9)


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Abordagens ::::
Não sendo jurista, considero a análise ou abordagem jurídica indispensável e não há ninguém a fazê-lo! Mesmo o Tribunal Constitucional deveria limitar-se a ela, pois assim daria menos o flanco e seria mais eficaz para aferir sobre o comportamento dos delinquentes que nos tiranizam e roubam.
O artigo de Pacheco Pereira, não só aborda, como aprofunda de forma coerente e lúcida uma apreciação sobre as ações emanadas do, poder político em Portugal. E chega a conclusões preocupantes.
Sendo o poder judicial um poder passivo exercido por servidores do povo (soberano) penso que os magistrados como corpo deveriam ser mais interventivos no julgamento dos actos dos servidores e mandatários do poder político. O Artº. 2º da CRP não pode ser um adorno.
Picaroto , 08 Setembro 2013
...
Quem contesta este artigo? Desta vez tiro o chapéu a Pacheco Pereira.
Orlando Teixeira , 08 Setembro 2013 | url
...
Claro que Pacheco Pereira tem razão.
Mas qual o senhor que o governo serve ? O senhor do capital não é ? Então, os contratos celebrados com o povo que se lixem !
A esquerda terá que conquistar o poder para que as coisas mudem.
Ai Ai , 08 Setembro 2013
José Pedro Faria (Jurista) - Os semeadores de cizânia.
José Pacheco Pereira (JPP) limita-se a apresentar os argumentos que têm sido repetidamente apresentados em muitos sítios, incluindo aqui na InVerbis, por diversos comentadores. Não constitui novidade dizer-se que este inenarrável Governo é forte com os fracos (trabalhadores em funções públicas, pensionistas...) e submissamente fraco com os poderosos.

Apesar de tudo, vale a pena ler o artigo pela lucidez e brilhantismo com que JPP defende os seus pontos de vista.

Concordo com o Sr. Comentador Orlando Teixeira quando pergunta "quem contesta este artigo?". Exatamente, ninguém o vai contestar racionalmente, e ninguém o fará por manifesta falta de argumentos. Contudo os "semeadores de cizânia", como muito bem lhes chama JPP encarregar-se-ão igualmente de semear disparates (e agora fazem-no às claras), incentivando assim despudoradamente o "discurso do taxista", absolutamente irracional, mas que ainda funciona em mentes infelizmente menos esclarecidas.
José Pedro Faria (Jurista) , 08 Setembro 2013
Abordagens II
Permitam-me voltar à carga. A abordagem jurídica é diferente de qualquer outra porque está centrada no direito. Dizer «forte com os fracos e fraco com os fortes» não é o mesmo que fazer uma abordagem à luz do direito utilizando uma eloquência judiciária em que o primeiro instrumento a utilizar para se chegar ao juízo e conclusões justas é o dicionário da língua portuguesa. Ainda estou sem perceber como uma classe de pessoas que constituem a população dos juristas não conseguiu encontrar um verbo mais adequado que o verbo cortar. Perante o direito existem duas categorias de actos: de cumprimento ou de violação, sendo que a esta última se chama delito. Quem comete delito é delinquente. Seja ou não mandatário em órgãos de soberania.
Picaroto , 08 Setembro 2013
...
Por alguma razão considero, de há muito tempo atrás, que Pacheco Pereira é não só o único verdadeiro oposicionaista ao Governo, como também o único político verdadeiramente sério no nosso País.
Sun Tzu , 08 Setembro 2013
...
Excelente artigo de Pacheco Pereira, o que alias não é novidade.
Mas gostaria de apontar os holofotes ao Tribunal Constitucional: as decisões que por aqui têm sido comentadas e glosadas são por demais conhecidas: e todos ou quase todos aplaudem a defesa dos princípios e dos direitos adquiridos contra as investidas economicistas do governo.
Mas o que é divertido é que, provavelmente, nunca o Tribunal Constitucional teve nas suas mãos um processo tão importante como o do alcance das limitações dos mandados autárquicos. Nesse processo está o Alfa e o Omega de todas as desgraças que se abateram sobre Portugal, e está o núcleo duro do poder perverso que levou este País à falência: refiro-me, como é óbvio, aos partidos politicos. E, talvez pela primeira vez na história recente, um tribunal teve nas mãos um cutelo com o qual poderia ter desferido um golpe se não fatal, pelo menos devastador na podridão que campeia na nossa classe política. Se tivesse decidido no sentido de impedir os dinossauros de se candidatarem mais uma vez, o TC teria feito uma revolução.
Porém, decidir contra o interesse imediato do governo e de um partido é uma coisa. Decidir contra todos os partidos, para o futuro é algo de radicalmente diferente. Portanto, foi sem surpresa alguma que assisti ao TC a pousar o cutelo, e afagar carinhosamente o cachaço do monstro.
Hannibal Lecter , 09 Setembro 2013
...
Um artigo na mouche, porém, não vai às causas do problema. Há uns dias, vi um programa na SIC Notícias em que o defensor de serviço do Governo (aliás, indivíduo com evidentes interesses no mundo empresarial, mas que preside a uma comissão de revisão do CIRC....!!!!!!!!!!!) teve a coragem de dizer, preto no branco, o que todos já tinhamos percebido: os interesses dos "investidores" (as aspas são intencionais) no recebimento de lucros (vulgo o interesse dos pançudos em verem a pança cada vez maior) são superiores aos interesses dos trabalhadores pagos pelo Estado. Como se a subsistência destes fosse um interesse menor face aos interesses agiotas daqueles, sendo que os contratos dos primeiros são obviamente lícitos no seu conteúdo e génese e os contratos dos segundos são, na sua maioria, senão todos, de legalidade mais do que duvidosa (PPPs, Swaps e dejetos similares).


Mas vamos às causas, formulando aqui uma perguntinha: Porque é que os interesses dos "investidores" (que não investiram coisa nenhuma ou pouco mais...) são superiores aos dos trabalhadores?

R: porque esses "investidores" ou são familiares ou são amiguinhos-clientes de políticos ou de gente que lhes é próxima (sob a forma de mentor, guia espiritual ou outra), ao passo que os tabalhadores não. E há uma segunda: é que os "investidores" terão certamente trabalho bem pago e pouco exigente (se de trabalho se poderá falar...) para os meninos políticos quando se lhes acabar o "tacho público", ao passo que os trabalhadores não (aliás, tomara estes que lhes deem trabalho quanto mais estarem a arranjar "tachos" para os políticos "reformados").
Zeka Bumba , 10 Setembro 2013
...
Pacheco Pereira: o contrato que assegura à Sra. Assunção Esteves receber, até que morra, 7000 euros por mês por ter sido juiza do TC durante um decénio deve, na sua opinião, ser para cumprir ou para violar?
... , 10 Setembro 2013

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