Nuno Rogeiro - "O regime está corrompido, o Governo anda à deriva, o parlamento não faz mais do que pairar, o povo apenas sobrevive, a Nação perdeu toda a soberania económica e financeira, as forças de segurança estão divididas, o Tribunal Constitucional limita-se a ler a lei. E agora, senhor general?" Asdrúbal tirou os óculos, pousou o relatório do SIS (o director Cícero estava de cama, e era substituído por Políbio, chefe operacional), pigarreou e bebeu o copo de Perrier. "A troika conseguiu destruir as nossas águas", reflectiu.
Por causa da morte de Peter O'Toole, o Presidente da República, induzido pelo Eivas, o conselheiro-cinéfilo, tinha revisto o filmezinho canadiano de 1978, Power Play. Realizado por Martyn Burke, com base no manual do golpe de Estado, do politóíogo americano Edward Luttwak (1), descrevia o pronunciamento militar num país europeu, assolado pela desordem social e política.
Antes de o marechal Aníbal, CEM [Chefe do Estado-Maior] do reformado Corpo de Autodefesa da República, começar a ler a lei 44/86, alterada pela 1/2012, sobre os regimes de estado de sítio e estado de emergência, o professor Séneca, jurista emérito de Belém e reputado também no Palácio Ratton, recitou secamente:
"Vossa Excelência sabe que, se os partidos tiverem a coragem necessária, reconhecem a evidência. Quando o engenheiro Aristóteles declarou a bancarrota e pediu a intervenção da troika, passámos a viver em regime de calamidade pública. Ora a Constituição prevê - não sou eu que digo - a declaração de estado de emergência, num caso semelhante. E a declaração da emergência implica a suspensão de direitos, liberdades e garantias. Por outro lado, se à turbação financeira se associar o perigo de insurreição, ou de acto de força estrangeira contra a ordem instituída, podemos falar da instauração do estado de sítio. Se olharmos para o artigo 19 da CRP, aí vemos que, numa situação dessas, todos os direitos podem ser suspensos..."
'Todos não, professor, todos não", interrompeu ironicamente o marechal, impecável na sua farda castanha.
Séneca olhou-o com o desprezo habitual, e continuou:
"Ia a dizer, todos os direitos com excepção, nos termos do mesmo artigo, dos referentes à vida, integridade pessoal, identidade, capacidade civil, cidadania, não retroactividade da lei criminal, direito de defesa dos arguidos, liberdade de consciência e religião."
"Mas mesmo essa suspensão tem limites", cortou timidamente Tito Lívio, chefe jurídico da oposição na assembleia, que parecia muito mais pequeno, na sala do Conselho de Estado, do que nas reuniões tempestuosas do senado, sobretudo desde que a PSP começou a invadir, às sextas, o hemiciclo.
1. Coup d'Êtat, A Practical Handbook, Londres 1968, i.a edição. De origem judaico- -romena, Luttwak ascendeu a pulso nos meios militares, diplomáticos e presidenciais americanos, e ficou famoso por predições bombásticas e falsas, como o "sucesso" da invasão soviética do Afeganistão. (*) Qualquer semelhança com personagens reais é impura coincidência. Já todas as normas citadas existem, felizmente ou não.
Politécnica (II)
Tito Lívio continuou, muito vermelho, e empolgado:
"Como o doutor Séneca sabe, os estados excepcionais que refere são pormenorizados nas leis 44/86 e 1/2012. Aí se pormenoriza que a declaração de emergência e de sítio - que em boa verdade quer dizer 'cerco', como nas praças ameaçadas da crise da independência, ou das invasões francesas - deve obedecer aos princípios da proporcionalidade e da provisoriedade. O artigo 5º, n.° 2, da lei de 86 chega a prever que se inscreva na declaração a data e a hora do início e da cessação dos estados de crise."
Tito brilhara alto, aos olhos de Asdrúbal. Os outros líderes parlamentares não quiseram ficar atrás. A gritaria letrada ouvia-se nos Pastéis de Belém (repletos de turistas chineses, em busca do "visto dourado do Durão", como lhe chamavam). "É a AR que deve autorizar, confirmar, fiscalizar e apreciar a declaração e aplicação desses estados. Não pode haver golpe de Estado sem parlamento", adiantava Catilina, o bloquista, antes de perceber o que tinha dito.
Politécnica (III)
"E a Assembleia não pode ser dissolvida durante a emergência, nem pode haver revisão constitucional durante a mesma, portanto tirem daí as vossas ideias", rugiu o comunista Platão.
"Mas é o Presidente que declara os estados de excepção", adicionou Cratilo, o democrata-cristáo, em voz doce, movendo os dedos.
"Ouvido o Governo, meus senhores, ouvido o Governo", esclareceu Marco António, novo líder de bancada do PSD, acrescentando referências aos artigos 134º, 138º, 162.°, 164º, 172º, 197º, 275º e 289.° da Constituição. No fim da citação, parecia exausto, mas feliz.
Asdrúbal deu a palavra a Aristófanes, o lente mediúnico que, depois do sucesso de Bola de Cristal na TVIC-PT (fusão dos ex-canais públicos, privados e cooperativos), começara uma digressão triunfal pelo País. O autor de As Nuvens (êxito instantâneo) doutrinou, na inconfundível voz de sopinha de massa:
"Todos os oradores são excelentes e meus amigos e meus antigos alunos, mas desviaram-se do assunto, ou perderam o fio-de-prumo."
Politécnica (IV)
Aristófanes julgou que tinha vibrado o golpe decisivo. À sua volta, como numa aparição, esvoaçavam querubins e magistrados. Prosseguiu metódico, como no ecrã: "Importante é salientar que os estados de que falamos se dirigem ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional. E repare-se que as leis sobre os regimes excepcionais não prevêem a suspensão das reuniões dos órgãos deliberativos de partidos e sindicatos (art. 2, e), embora possam autorizar a proibição de jornais, televisões e rádios (art. 2, d).
A intervenção da troika, ou o que levou a ela, é uma calamidade pública. E pode derivar para a revolta. Olhem para as ruas. Mas são os senhores dos partidos que precisam de declarar a emergência, para que se suspendam direitos e garantias 'menores'. Tudo isto, sempre com termo certo.
Ou preferem suspender os mesmos, mas para sempre?"
Lá fora, junto à estátua de Albuquerque, morria de frio mais um pedinte envergonhado.
Era Natal.
Nuno Rogeiro, Politólogo | Sábado | 24-12-2013
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